Mulheres do campo fortalecem território com agroecologia e economia solidária

Entre as terras do Recôncavo Baiano, a jaca se fez símbolo. Fruta de muitos gomos e carne firme, ela dá nome e sentido à Associação Agroecológica Jaqueira, que nasceu em 2020, no povoado do Córrego 2, distrito de Corta Mão, em Amargosa. O projeto é a reinvenção da vida pelas mãos das mulheres do campo, em busca de autonomia.Foi em plena pandemia que a semente brotou, com a crise sanitária emergente, acendeu-se nas mulheres da região a necessidade do enfrentamento às ausências: de comida saudável, de renda justa, de políticas públicas e de reconhecimento.“O protagonismo feminino é a alma da Jaqueira. Sua coordenação é 100% composta por mulheres campesinas, majoritariamente negras — incluindo mães solos, pessoas com deficiência, representantes de terreiros e da comunidade LGBTQIAPN+,” explica Crys Rios, coordenadora da Jaqueira e do Colegiado de Desenvolvimento Territorial (CODETER) Vale do Jiquiriçá.Desde então, o que era chão batido virou território fertilizador. A associação se organizou sob iniciativas que geram renda, promovem a inclusão produtiva e valorizam a soberania alimentar e a educação ambiental. Entre os projetos desenvolvidos estão as Feiras Agroecológicas, a Moeda Jaqueira, o Eco-Sabão e o Projeto Composteira, chegando a movimentar R$ 90 mil por mês.Plantando dignidadeNa Jaqueira, produzir e comercializar alimentos agroecológicos não é apenas uma atividade econômica, mas um ato político de resistência e afirmação identitária. Essa é a diferença entre agroecologia e agricultura orgânica: enquanto o orgânico se dirige ao mercado, a agroecologia se firma como filosofia de vida coletiva, integrada à justiça social e ao cuidado com os ciclos naturais.“Era do povo uma alimentação orgânica, um viver coletivo nas aldeias, nos quilombos, praticando a medicina natural. Hoje, tudo isso foi apropriado pela elite, e o que restou para o povo foi um alimento ultraprocessado, transgênico, altamente industrializado”, diz Daniel Oliveira, membro da Jaqueira e coordenador do Centros Públicos de Economia Solidária (Cesol) Vale do Jiquiriçá.

Para a Jaqueira, agroecologia é um ato político

|  Foto: Arquivo Pessoal

Crys explica que, ao romper com o modelo do agronegócio, marcado pelo uso de agrotóxicos e pela exploração da terra, a Jaqueira defende a vida, a biodiversidade e o direito das comunidades camponesas de controlar seus modos de produção.

Os princípios da Jaqueira vem da natureza da mulher… Onde ela era o centro da sociedade, a mãe que cuidava, zelava e organizava as comunidades

Crys Rios

Economia que brota de afetosAs feiras agroecológicas são um dos eixos centrais de atuação da Jaqueira e já acolheram mais de 200 empreendimentos. Em Salvador, as mulheres descem do campo, como quem leva flores e frutos nas mãos, ocupando espaços urbanos com alimentos vivos e saberes ancestrais.“As organizações das feiras são baseadas em autogestão, cooperação e solidariedade. Isso constrói impacto na autonomia financeira das mulheres e na geração de renda direta. Também produz histórias, deposita afetos em suas produções, reduz o índice de vulnerabilidade e dependência masculina, além de fortalecer a autoestima”, diz Crys.O modelo de organização inclui divisão de tarefas por afinidade ou território, rodízios, gestão coletiva dos recursos e formações sobre precificação justa, comunicação e economia feminista. A produção, que vai de alimentos a biojoias, é feita coletivamente e circula em redes curtas de comercialização.“Esse protagonismo reforça o papel das mulheres como agentes de transformação social, contribuindo para a construção de territórios mais justos, sustentáveis e inclusivos. Por meio das rodas de conversa, oficinas e intercâmbios com o público urbano, as agricultoras ampliam sua rede de solidariedade e aprendizado, gerando processos contínuos de empoderamento e auto-organização coletiva”, afirma a coordenadora.

As feiras agroecológicas são um dos eixos centrais de atuação da Jaqueira

|  Foto: Arquivo Pessoal

Desenvolvimento que nasce do territórioA Jaqueira é, também, um projeto de desenvolvimento territorial enraizado na realidade local. Antes da associação, muitos produtores não tinham onde escoar sua produção. Hoje, as feiras itinerantes e os canais de venda direta ampliam a renda e conectam o campo à cidade.”É o principal ponto que a gente tem de comercialização, de gerar renda e inclusão social produtiva. Hoje a gente está fazendo feiras territoriais onde a galera pode expor seus produtos, dando visibilidade às suas produções e também tendo processos de comercialização. O público passa a conhecer seus produtos e começa a fazer encomendas com os produtores”, diz Daniel.Ao mesmo tempo em que colhe, a Jaqueira aduba, com uma atuação territorial que vai além da venda de alimentos. Projetos como a compostagem transformam restos orgânicos em fertilidade para a terra, fechando ciclos produtivos com sustentabilidade.“A gente faz bancos de coleta nas nossas feiras, e traz aqui para a Jaqueira para fazer um processo de compostagem. A gente transforma em adubo, devolve para a terra o alimento que ela nos forneceu. Esse composto é doado para escolas, para a prefeitura e para os jardins. Também fazemos campanhas de doação nas feiras para incentivar a compostagem”, relata Daniel.

Eco-sabão produzido pela Jaqueira

|  Foto: Arquivo Pessoal

Além disso, as ações se somam à reciclagem de lixo, com o reaproveitamento de materiais em produtos orgânicos e parcerias que fortalecem as redes solidárias.“Todos os resíduos a gente não joga no lixo; os levamos para uma associação de catadores. O material recolhido é utilizado em oficinas de educação ambiental ou encaminhado para as cooperativas. Alguns deles a gente faz o processo de reaproveitamento. Por exemplo, o que sobra a gente faz o Eco-sabão, que é utilizado aqui na Jaqueira. Já o excedente comercializamos nas nossas feiras”, detalha Daniel.Educar para resistir: a escola agroecológicaA trajetória da Jaqueira demonstra que a educação do campo não é apenas um direito, mas uma ferramenta de emancipação. A Escola Agroecológica Jaqueira é um dos marcos mais importantes da associação: um laboratório vivo de educação popular, onde a agroecologia se entrelaça à ancestralidade e às lutas sociais.“A proposta pedagógica da escola se pauta nos princípios da Educação do Campo, inspirada em autores como Paulo Freire, Dermeval Saviani e na epistemologia dos saberes populares. As aulas acontecem em formato de vivências, oficinas, rodas de conversa, mutirões e itinerâncias nas comunidades, conectando teoria e prática, ciência e tradição”, relata Crys.A escola é campo de estágio e pesquisa para cursos como Educação do Campo, Serviço Social e Agroecologia, em parceria com universidades como a Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e o Instituto Federal da Bahia (IFBA). Também recebe crianças, promovendo consciência política desde cedo com hortas escolares, cantigas da roça e atividades lúdicas.

Daniel Oliveira durante atividade da Escola Jaqueira, em Amargosa

|  Foto: Arquivo Pessoal

“Um dos principais focos é a formação continuada de educadoras populares, mulheres do campo que, além de cultivar a terra, cultivam saberes e lideranças. A partir das experiências locais e das demandas do território, essas mulheres se tornam multiplicadoras de conhecimentos agroecológicos, agentes políticas e referências comunitárias”, resume a coordenadora.A moeda que giraO futuro da Jaqueira está também na expansão do uso da Moeda Jaqueira, inspirada nos princípios da economia solidária, essa moeda fortalece os laços entre os membros da associação e circula riqueza dentro do território. Mais do que um meio de troca, ela funciona em complementaridade ao real, trazendo autonomia comunitária e resistência ao modelo financeiro excludente, afirma Crys.“A circulação da moeda é restrita aos participantes da associação, que são cadastrados como empreendimentos, fortalecendo os laços comunitários. Essa moeda fortalece a economia interna, incentivando o consumo interno, dinamizando a produção, promovendo a equidade, valorizando os trabalhos não reconhecidos, aqueles que estão em ainda em extrema invisibilidade”, explica.

A Moeda Jaqueira é inspirada nos princípios da economia solidária

|  Foto: Arquivo Pessoal

Adicionar aos favoritos o Link permanente.