Trabalhar para viver ou morrer? HQ mostra absurdos do mundo do trabalho

Segundo estudiosos, uma das origens da palavra “trabalho” vem do latim “tripalium”, que significa “três estacas”. Essas três estacas eram um instrumento de tortura, similar à cruz, no qual escravos eram punidos. Hoje em dia, infelizmente, a coisa não mudou muito. Pelo menos, é o que se pode deduzir – não só pelo que vemos ao nosso redor –, mas também pelo que relata o quadrinista francês Fabien Toulmé em sua nova HQ, Reflexos do mundo: Trabalhar e viver.Um cronista das questões sociais do século 21, Toulmé viaja pelo mundo, entrevista pessoas com histórias interessantes, envolvidas em lutas sociais, e narra essas histórias em HQs brilhantes, difíceis de serem largadas antes da conclusão da leitura.Foi assim com o primeiro volume de Reflexos do Mundo, subintitulado Na Luta, no qual conhecemos três mulheres fortíssimas: Nidal, uma ativista que enfrenta a revolução popular no Líbano; Rossana, líder da Associação das Mulheres do Porto do Capim (em João Pessoa), que luta para que os moradores não sejam expulsos de suas casas; e a ativista Chanceline, que luta em prol do direito das mulheres no Benim.Em Trabalhar e viver, Toulmé traz novos personagens e aumenta o escopo social, entrevistando diversos personagens enfrentando sérias questões relacionadas à necessidade de trabalhar, homens e mulheres. Desta vez, ele percorre três lugares igualmente distintos: Austin (no Texas, Estados Unidos), Seul (na Coreia do Sul) e as Ilhas Comores, um pequeno arquipélago na costa oriental da África, ex-colônia francesa.Em Austin, cidade conhecida por ser a mais cosmopolita e progressista do conservador Texas, estado dominado pelo Partido Republicano, ele investiga o fenômeno que ficou conhecido como “big quit” (grade demissão): durante a pandemia de covid 19 (entre 2020 e 2022), cerca de 50 milhões de trabalhadores norte-americanos pediram demissão de seus empregos.Lá ele entrevista diversas pessoas, mas a principal delas é um sujeito chamado Austin (sim, ele tem o mesmo nome da cidade) Rosenthal. Ex-banqueiro de investimentos, movimentou bilhões de dólares, mas largou tudo para seguir a carreira de cantor de rock.À medida que Austin (“from Austin”, como ele se apresenta), conta sua história, Toulmé vai narrando sua história em seus desenhos simples, mas muito funcionais e agradáveis à visão, usando um truque igualmente simples, pelas cores, para diferir o que é flashback (em tons de azul) e o que é agora (em tons de salmão).A história de Austin ilustra bem o moedor de carne humana que é Wall Street, o centro financeiro de Nova York, chegando a ficar 72 horas sem dormir, sob a luz branca dos escritórios do banco JP Morgan, pensando em formas de fazer com que bilionários ficassem ainda mais ricos.Austin ainda teria muitas idas e vindas no mundo do trabalho exaustivo e desumano do mercado financeiro até decidir largar tudo, em uma narrativa muito rica, que Toumé narra passeando com Austin por diversos pontos turísticos de… Austin.“Eu sabia que eu queria começar (essa HQ) falando da grande demissão, porque, para mim, era tipo um sinal do que é o trabalho na nossa época. Eu achei que poderia ser bem interessante analisar e compreender, porque, quase ao mesmo tempo, tanta gente decidiu deixar um emprego para ir para fazer outra coisa”, conta Fabien para o jornal A TARDE, em entrevista por arquivos de áudio.“Quando eu comecei a refletir sobre esse assunto, eu sabia que eu queria um perfil diferente. Eu queria um perfil de uma pessoa que largou tudo e tinha a possibilidade de largar tudo. E eu queria variar os pontos de vista. Então, uma vez que fiz isso, eu decidi quais perfis eu poderia entrevistar. Nessa reportagem, eu fui ajudado pela minha irmã, que é jornalista. Ela foi atrás desses perfis. Eu disse para ela o que eu procurava e ela foi atrás. Ela encontrou o Austin num jornal do Texas”, relata o artista.

|  Foto: Fabien Toulmé | Divulgação

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Trabalhar e morrerA segunda parada de Toulmé, na Coreia, infelizmente, aborda um assunto mais pesado: o fenômeno da gwarosa – morte por excesso de trabalho.Toulmé fecha o foco nos trabalhadores de plataformas digitais, como Hyun-Cheol, quadrinista que produz webtoons (quadrinhos digitais, extremamente populares na Coreia) e Seung Ju, entregador da Coupang, equivalente coreana da Amazon, conhecida pela sua entrega absurdamente ágil, que costuma acontecer no mesmo dia da compra.Essa agilidade, evidentemente, é por conta do sacrifício (humano) dos seus entregadores. É um plantão tão frenético, tão puxado que, somente em 2020, 22 entregadores morreram de gwarosa.Desenhistas de webtoon também não tem vida fácil na Coreia. A exigência é que eles produzam um episódio com 60 quadrinhos por semana – roteiro e desenhos. Ao mesmo tempo, como se trata de uma plataforma on line, os comentários dos leitores determinam a continuidade ou não de uma HQ. E todos sabemos como esses comentários podem ser crueis. Resultado: burnout.

|  Foto: Fabien Toulmé | Divulgação

Ylang ylangA última parada de Toulmé, nas Ilhas Comores, desvenda o trabalho das colhedoras de ylang ylang, uma flor que só existe naquele arquipélago e cujo óleo é um ingrediente essencial para a poderosa indústria francesa de perfumes.O problema é que o que se paga àquelas mulheres, nativas de uma ilha cuja atividade econômica é quase zero, é – claro – uma ninharia que mal dá para elas sustentarem suas famílias, sendo obrigadas a recorrer a plantação de hortas e à coleta de frutas nativas para sobreviverem. Uma vida miserável, que contrasta de forma muito flagrante com o glamour (brega) dos comerciais de perfume.Entre uma viagem e outra, Toulmé insere interlúdios nos quais conversa com a socióloga Dominique Méda, especialista em trabalho e figura fácil na mídia francesa, já que é bastante consultada para falar sobre o assunto. O tripalium lá do início deste texto é ela quem fala. “Reflexos do Mundo realmente é um projeto que eu queria misturar diário de viagem com jornalismo e sociologia. O objetivo era entender um pouco os comportamentos humanos, vamos dizer assim”, conta Toulmé.“Por isso eu tive essa ideia de entrar em contato com sociólogos, os especialistas, para me dar essa visão mais ampla dos comportamentos humanos. Então foi assim que surgiu essa ideia dos interlúdios, que também existem no primeiro volume da série”, acrescenta.

|  Foto: Fabien Toulmé | Divulgação

E as IAs?Engenheiro por formação, Toulmé já dirigiu uma empresa do ramo em Fortaleza e João Pessoa, onde morou por anos, após vir ao Brasil em um intercâmbio de sua faculdade. Como Austin, largou tudo para perseguir seu sonho de ser um quadrinista de sucesso.É, portanto, um observador privilegiado das questões que aborda, até por investiga-las in loco. Hoje, uma das questões mais urgentes sobre o mundo do trabalho é certamente o avanço das IAs (Inteligências Artificiais), que perigam extinguir uma série de profissões, projetando uma grande sombra de dúvida sobre o futuro.“Nesse volume, eu já perguntei um pouco para a Dominique Méda sobre como ela via essa questão, se era uma coisa preocupante ou não. Acho que eu concordo com ela. No decorrer dos séculos, apareceram grandes progressos técnicos, tecnológicos, que a gente pensava que ia substituir o ser humano e que, no final das contas, ajudou a criar outros trabalhos. Talvez essa nova tecnologia, a IA, seja um pouco mais radical, no sentido de que – estou falando da minha profissão de quadrinista –.você pode criar um quadrinho agora sem precisar saber desenhar nem contar a história”, observa Toulmé.“Então, eu acho que eu sou dividido. De uma certa maneira, eu acredito que a gente vai encontrar uma maneira de coexistir com a inteligência artificial e, de outra maneira, eu tenho um pouco medo da falta de controle dos governos, da sociedade. O poder das grandes empresas que vão tentar impor essa falta de controle. Eu acho que talvez o caminho seria tipo um carimbo, que faça com que a gente possa identificar o que é feito com inteligência artificial e o que não é”, sugere.Em um mundo no qual as pessoas cada vez mais vivem para trabalhar, ao invés do inverso (e será que algum dia isso já foi diferente para o povo?), Fabien Toulmé aponta que a solução mais simples é talvez a mais sábia: só queremos trabalhar E viver.Reflexos do mundo: Trabalhar e viver / Fabien Toulmé / Nemo/ 360 p./ R$ 129,80 / E-book: R$ 90,90

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