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Eu admito que sempre me senti protegida. Por ele, pela vida, por mim mesma ou pela minha própria sorte, eu costumava ter poucos “azares” e perigos pelo caminho. Vez ou outra, em uma praia, alguns sustos. Mas, se algo grave um dia acontecesse, não sei se saberia o que fazer.Hoje, por um dos maravilhosos acasos do jornalismo, eu aprendi. Em uma pauta sobre a vinda do Grão-Mestre Kobi Lichtenstein para a Bahia, acabei em um tatame de Krav Magá, já que sempre se escreve melhor sobre o que se sabe viver. E, naquele tatame, eu descobri que sempre soube viver, mas também era capaz de saber sobreviver.No tatame, pessoas de todos os tipos estavam enfileiradas em branco. Homens, mulheres, crianças, idosas. Alguns mais altos que o espelho da parede. Outros, mais como eu. Todos em pé de igualdade, ainda que a força de cada um fosse nitidamente diferente.Alguns cumprimentos, algumas reverências, “kidá”, e a aula começou. De início, todos corremos ao redor da sala, de frente, de lado, com joelhos para cima e para trás de um jeito descontraído, quase engraçado. Em seguida, o clássico de academia: flexões, abdominais, e os alongamentos que pela primeira vez fiz puxando os dedos dos pés para cima. Então, o aquecimento terminou.
Aquecimento no início da aula
| Foto: Denisse Salazar I Ag. A Tarde
Teatro de improvisoO Krav Magá não é uma arte marcial. Não te ensina regras, não te avalia e não diz se você pode ou não fazer algo. Diferentemente da maioria das aulas de esporte, não era um ensaio – era mais como um teatro de improviso. As escolhas eram livres, o que fazer era decisão de cada um. Muito parecido com a vida em si.Juntos, todos no tatame aprendiam socos. Para frente, esquerda, direita, para trás. E, mesmo sendo tão diferentes, todos davam socos parecidos. Ao invés de projetar a potência de força de cada um, todos foram ensinados a usar todos os cinquenta quilos que existiam em seus corpos para projetar cada grama para frente com o soco. A força vinha da rapidez, da projeção, da intensidade. Não da força em si.Ou, talvez, da força também. A física de escola ensina que força é massa vezes velocidade, e ainda assim o conceito de força parece estar na massa. Quem tem mais músculo ou gordura sempre aparenta ser mais forte do que quem é mais fininho, ainda que a massa seja apenas metade da equação. Naquele tatame, não era, e a força ia muito além de uma musculação.
Exercícios no início da aula
| Foto: Denisse Salazar I Ag. A Tarde
Pontos fracos, lógicas fortesEntre socos, murros e ataques, a sala deixava de parecer ter paredes e começava a ganhar ruas. Os olhares engraçados da corrida de mais cedo começavam a dar lugar às tensões de quem se sentia lidando com a vida real enquanto protege a sua e a dos seus. Mães e pais que querem defender seus filhos do mundo, filhos que querem proteger a si mesmos da vida. A sala continua tendo um ar de leveza, mas ganha um adicional de seriedade. Não era um ensaio. Era um improviso com vidas em jogo.Dali em diante, cada aluno seguiu para sua própria “matéria”. A própria simulação em que se imaginariam no mundo real, sofrendo um ataque de um agressor conhecido na sala mas desconhecido lá fora. Para mim, veio Maria Isabel, que há dez anos luta e sabe se defender sozinha. Hoje ela tem sessenta anos de idade, e na rua talvez passasse por alguém indefesa. Em cima do tatame, era muito claro que ela é capaz de vencer o que quer que aconteça.Isabel me estrangulou. Colocou as mãos no meu pescoço e segurou firme, do jeito que meu pai temia que alguém um dia fizesse na rua. Ao lado, o professor me ensinava como reagir. Se eu estivesse na rua, tenho (ou pelo menos penso que tenho) certeza que tentaria agarrar os braços de quem estivesse me agredindo, e perder na força física que eu não tenho a oferecer. Hoje, fiz diferente.
Aula de Krav Magá do professor Gabriel Carvalho
| Foto: Denisse Salazar I Ag. A Tarde
Enquanto Isabel segurava meu pescoço, eu contrariava a lógica de mãos em pinça que nos ensinam desde bebês e focava na real lógica que nunca percebi. Ao puxar uma mesa, carregar compras no supermercado ou abrir uma gaveta emperrada, nunca usei o polegar, e ainda assim insistia em usar contra algo mais forte do que tudo que já tinha experimentado. Dessa vez, foquei nas coisas certas. Fui pelo meio dos braços dela ao invés de pegar pelos lados onde não teria firmeza. Segurei os polegares dela com meus outros dedos, usei meus próprios braços como alavanca substituta de uma força que não precisei ter, e puxei. Os braços dela abriram.Repetimos algumas vezes, e em todas, deu certo. No sorriso tranquilo de Isabel, para mim estava a certeza de que ela estava me ensinando, acompanhando minha evolução e corrigindo meus erros. Por isso, uma vez, pedi que ela segurasse firme de verdade, sem me deixar soltar. Ela disse que sempre esteve segurando.Conhecendo um mundo novo, eu confesso que não acreditei. Acho que ela percebeu minha descrença e propôs uma troca. Pediu que eu a estrangulasse e fez comigo o mesmo movimento que eu vinha fazendo. Eu juro que apliquei toda a força que tinha, mas ainda assim, meus dedos abriram como se fosse impossível segurar. Na realidade, porque era. Só é difícil acreditar.Depois do medo, a sobrevivênciaÉ isso que o Krav Magá faz com as pessoas. Recebe quem chega após uma vida inteira de não saber se defender fisicamente e ensina que todo corpo é feito para viver, sobreviver e se proteger. Usa as ferramentas que já estão ali e nunca nos ensinaram como usar, abrindo milhares de possibilidades para se defender, reagir, e não cometer o erro da omissão quando a omissão pode custar sua vida.É como diz o próprio Grão Mestre – todo mundo tem medo. O que te faz sobreviver é o quanto você é capaz de não deixar que ele te paralise.O segredo nunca esteve na força física. Os exercícios de academia no início eram, em essência, para fazer com que nós mesmos nos sentíssemos fortes e por isso acreditássemos que conseguiríamos desferir um soco ou escapar de um estrangulamento. Mero treinamento físico para tornar o cérebro mais seguro de si. A essência da luta, da sobrevivência e da defesa do Krav Magá está no como, capaz de tornar qualquer pessoa capaz de lutar por si mesma.
Alongamentos no início da aula
| Foto: Denisse Salazar I Ag. A Tarde
Talvez se eu tivesse conhecido o Krav Magá antes, meu pai pudesse ter tido mais tranquilidade com uma filha crescendo no mundo. Talvez se mais pessoas conhecessem, menos saíssem de casa com medo todos os dias. Talvez fôssemos mais iguais. Talvez fosse a violência quem sofreria.No final das contas, uma academia de Krav Magá mais se parece com um lugar de amor à vida. Daqueles que se importam o suficiente com a própria para aprender a protegê-la, valorizando a existência e usando as ferramentas que já nasceram com cada um de nós para sobreviver lá fora. É como um pai – o lugar seguro e cuidadoso que, para que você possa viver bem e muito, te ensina a se preparar para o mundo.