Por que nunca mais uso preto na sexta-feira (e como isso mudou meu dia)

Era uma sexta-feira e também era o dia da entrega do trabalho de uma disciplina do doutorado, que eu passei as férias todas estudando para escrever e escrevendo, o que não me impediu de ficar até às seis da madrugada revisando e lambendo o texto como se fosse meu próprio filhote de gato.Acordei por volta das onze horas e fiz um café pra remediar o sono e a vista cansada da jovem senhora que vos fala – minha visão não é mais o que era e agora pode demorar horas para focar. Também resolvi questões importantes de ordem intestinal, que sempre melhoram meu humor de forma considerável, e fui validar as revisões feitas na véspera.Terminado o texto e decidido o título, mandei um arquivo formato Word para meu companheiro imprimir. Foi então que começou a saga: não tinha papel em casa. Não em qualquer casa, na casa de um ilustrador, de um artista plástico, uma casa com uma coleção de papeis de todos os formatos e gramaturas, mas onde não se encontrava um mísero A4 branco.Reviramos tudo e achamos um bolinho de folhas limpas perdidas entre muitas impressões de rascunho. Próximo perrengue, a impressora, esse agente do caos, pulou a impressão de duas páginas que tivemos que imprimir separadamente. Passado o ódio, verifiquei que estava tudo ali, grampeei, botei numa pasta, vesti minha roupa e chamei um motorista pelo aplicativo.

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Da urgência das entregas

Eu estava animada, afinal, tinha conseguido terminar o trabalho e tinha argumentos para defender sua qualidade diante de meus piores críticos, todos vozes da minha cabeça. Mas o dia ainda guardava surpresas, como pude constatar assim que entrei no carro e vi que estava sem minha bolsa laranja tom marca texto.Pedi ao motorista para esperar, ele se recusou, eu subi, dei cinco estrelas a ele sem querer e inferi que a viagem tinha sido cobrada. Peguei a bolsa, pedi outro carro, cheguei à Universidade e me dirigi ao armário. Não encontrei, juro. Eu conhecia aquele escaninho da entrega do semestre anterior, eles são etiquetados com o nome de cada professor, eles estão em um único corredor, mas eu passei várias vezes sem enxergar.Quando finalmente encontrei, nova surpresa, as folhas estavam se soltando do grampo e o título “Introdução” tinha ido parar na capa, não me pergunte como não notei antes. Tentei ir na Xerox, mas estava fechada, também tentei resolver pelo telefone com meu amado, mas ele é atrapalhado e eu já estava desesperada demais para isso.Pedi outro motorista e, enquanto esperava, pensava que tudo isso era um sinal do destino, que eu não devia entregar o trabalho, que o texto estava uma merda e eu era uma fraude, mas que precisava entregar, que mesmo que estivesse ruim era melhor que zero, que estava dando tudo errado agora, para dar certo depois, que eu estava sendo dramática como sempre, que queria morrer, mas que não ia morrer, até que, já a caminho de casa, veio a iluminação – era sexta-feira, em Salvador, e eu estava toda vestida de preto.

Foi aí que tudo mudou. Parei na banquinha perto de casa e pedi uma cerveja gelada, que o barraqueiro me entregou incrustada numa pedra de gelo. Cheguei em casa arrancando a roupa do corpo e liguei para minha amiga que sempre me disse (e sempre foi ignorada) para eu parar de usar preto na sexta-feira.

Pelada, contei minhas desventuras, soltamos nossa gargalhada, cacei uma roupa branca no armário, formatei o arquivo e imprimi tudo de novo, fui para a Universidade ouvindo Peter Tosh e entreguei meu ensaio num envelope lacrado para evitar que fosse extraviado.O resultado do trabalho foi melhor do que eu jamais teria me permitido imaginar e, quanto às sextas-feiras, se você me encontrar, eu estarei de branco.*Escritora

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