Leia Também:
“O moço do lixo me salvou”: o que a cidade joga fora do que somos
Será só aqui na Bahia essa vocação para o barulho?
Da urgência das entregas
Eu estava animada, afinal, tinha conseguido terminar o trabalho e tinha argumentos para defender sua qualidade diante de meus piores críticos, todos vozes da minha cabeça. Mas o dia ainda guardava surpresas, como pude constatar assim que entrei no carro e vi que estava sem minha bolsa laranja tom marca texto.Pedi ao motorista para esperar, ele se recusou, eu subi, dei cinco estrelas a ele sem querer e inferi que a viagem tinha sido cobrada. Peguei a bolsa, pedi outro carro, cheguei à Universidade e me dirigi ao armário. Não encontrei, juro. Eu conhecia aquele escaninho da entrega do semestre anterior, eles são etiquetados com o nome de cada professor, eles estão em um único corredor, mas eu passei várias vezes sem enxergar.Quando finalmente encontrei, nova surpresa, as folhas estavam se soltando do grampo e o título “Introdução” tinha ido parar na capa, não me pergunte como não notei antes. Tentei ir na Xerox, mas estava fechada, também tentei resolver pelo telefone com meu amado, mas ele é atrapalhado e eu já estava desesperada demais para isso.Pedi outro motorista e, enquanto esperava, pensava que tudo isso era um sinal do destino, que eu não devia entregar o trabalho, que o texto estava uma merda e eu era uma fraude, mas que precisava entregar, que mesmo que estivesse ruim era melhor que zero, que estava dando tudo errado agora, para dar certo depois, que eu estava sendo dramática como sempre, que queria morrer, mas que não ia morrer, até que, já a caminho de casa, veio a iluminação – era sexta-feira, em Salvador, e eu estava toda vestida de preto.
Foi aí que tudo mudou. Parei na banquinha perto de casa e pedi uma cerveja gelada, que o barraqueiro me entregou incrustada numa pedra de gelo. Cheguei em casa arrancando a roupa do corpo e liguei para minha amiga que sempre me disse (e sempre foi ignorada) para eu parar de usar preto na sexta-feira.
Pelada, contei minhas desventuras, soltamos nossa gargalhada, cacei uma roupa branca no armário, formatei o arquivo e imprimi tudo de novo, fui para a Universidade ouvindo Peter Tosh e entreguei meu ensaio num envelope lacrado para evitar que fosse extraviado.O resultado do trabalho foi melhor do que eu jamais teria me permitido imaginar e, quanto às sextas-feiras, se você me encontrar, eu estarei de branco.*Escritora