‘Todo ato de consumo é uma escolha ambiental’

A crise climática não se resume a decisões governamentais ou à atuação de grandes poluentes industriais. Cada pessoa contribui para o aquecimento global por meio do que consome, como alerta o engenheiro ambiental Bruno Yamanaka, porta-voz do Instituto Akatu, em entrevista exclusiva ao A TARDE. “O consumo responde por mais de 60% das emissões globais”, pontua.Yamanaka explica que as escolhas cotidianas — como o que comemos, vestimos ou compramos pela internet — moldam as cadeias produtivas e impactam diretamente o meio ambiente. Para ele, a mudança começa com uma reflexão crítica no momento da compra e exige políticas públicas, educação e transformação cultural.Durante a conversa, ele explicou ainda que uma das principais missões do Instituto Akatu é justamente gerar conhecimento para que os consumidores tomem decisões mais responsáveis. Saiba mais na entrevista a seguir.A crise climática costuma ser atribuída aos grandes emissores de gases de efeito estufa, mas qual é, de fato, o impacto do consumo individual nesse cenário global de aumento da temperatura do planeta?De fato, o consumo dentro desse cenário de crise climática tem um papel de extrema relevância, e que muitas vezes acaba sendo negligenciado. A gente olha geralmente para os grandes emissores dos gases de efeito estufa, mas o fato é que muito do consumo individual rege como as empresas produzem. Mas devemos evitar ter um olhar de quem tem mais culpa. Temos a emissão de gases em diferentes intensidades, quando falamos das empresas que produzem em grande escala. Só que, por outro lado, os consumidores têm sua parcela de culpa nos atos de compra de diferentes produtos e serviços. Temos dados mostrando que o consumo responde por mais de 60% das emissões globais. Ele define o ritmo das cadeias produtivas, molda comportamentos e influencia até a geração de políticas públicas. Enfim, o consumo tem um papel muito relevante. Afinal, é a forma como se consome que vai ditar o impacto no meio ambiente e se nós vamos agravar essa crise climática ou não.Pesquisas mostram que o consumo de recursos naturais cresce três vezes mais rápido do que o ritmo da população mundial. Quais os impactos disso para o planeta?O consumo de recursos vem aumentando com o crescimento da população mundial. Isso porque a população de classe média vem crescendo cada vez mais. E essa população tem um poder aquisitivo para consumir mais, gerando um impacto bastante relevante. Uma vez que consumimos, digamos assim, mais do que o planeta consegue fornecer de maneira sustentável, degradamos todas as áreas que fornecem recursos. A ponto de termos, hoje em dia, locais que tinham abundância de água e hoje não tem mais. Que tinha abundância de recursos minerais e hoje já não tem tanto. Esses impactos reverberam para nós e para as futuras gerações. O fato é que a gente corre contra o tempo para reverter essa tendência. Cada vez mais, a gente vê pesquisas, especialistas e cientistas mostrando que o cenário vai se agravar se não forem tomadas medidas urgentes. E a principal delas é promover o desacoplamento entre o crescimento econômico e a degradação ambiental. Ou seja, tentar elevar a produtividade dos recursos e reduzir o consumo de matérias-primas e de energia. Para produzir de uma forma mais eficiente é preciso minimizar o impacto ambiental associado. Basicamente, precisamos de algumas mudanças estruturais e tecnológicas para transformar a forma como a gente produz, distribui e consome. Precisamos de um modelo de produção que seja mais eficiente e consumir de uma forma mais consciente também.Já se sabe que o estilo de vida tem um peso enorme no impacto ambiental — e que o 1% mais rico do planeta emite mais gases de efeito estufa do que metade da população mais pobre reunida. Diante disso, o que dá pra fazer para tornar o consumo mais justo e sustentável?O impacto do consumo dessa parcela 1% mais rica do planeta, até por tudo o que ela tem acesso, acaba sendo muito maior. Mas, quando a gente fala de tornar o consumo mais justo e acessível, não tem uma frente única de atuação. A gente precisa lidar com essa questão em diferentes frentes, como as políticas públicas. É fundamental para poder lidar com as questões de excesso ter, por exemplo, uma tributação em produtos, serviços que têm alto impacto para o meio ambiente. Ter incentivos para produtos que têm menos impacto, que são mais sustentáveis, como subsídios, para torná-los mais acessíveis à população. Regular a questão publicitária é bastante importante, até para educar a população. Além das políticas públicas, a gente tem os modelos de produção. É fundamental que as empresas comecem a rever os seus modelos para – ao invés de extrair e descartar -, consigam trabalhar com a reutilização, a reciclagem e que forneçam produtos que durem mais. Além da mudança, digamos, cultural, porque muitas vezes acaba nos deparamos com o consumismo. Com uma cultura que valoriza consumir novidades, querendo sempre um novo modelo. Se a qualidade de vida nossa é focada no consumo, precisamos mudar para valorizar mais as experiências, passar mais tempo com as pessoas, as relações com a natureza, ter mais tempo livre, saúde. E tem a questão da educação ambiental. É muito importante, desde cedo, levar educação ambiental às crianças, para que isso venha se desenvolvendo ao longo da vida delas. E precisamos cada vez mais valorizar os nossos recursos. A água que a gente consome, a nossa biodiversidade, o ar.Do ponto de vista individual, quais atitudes de consumo podem realmente fazer a diferença?Quando falamos do ponto de vista individual é importante destacar que qualquer atitude para ter um consumo com menos impacto faz a diferença. Por exemplo, quando a gente fala da água, energia, resíduos, alimentos. São questões do cotidiano como consertar os vazamentos em casa, desligar os aparelhos e tirá-los da tomada quando não estão sendo utilizados. Consumir os alimentos integralmente e preferir produtos com menos embalagens. Todas essas atitudes podem reduzir o nosso impacto do ponto de vista individual. Mas, se for para escolher uma atitude, eu diria que seria a reflexão mesmo como consumidores no momento da compra. É comum associarmos o consumo com uma etapa de compra. Mas a verdade é que o consumo envolve a etapa de compra, mas é preciso entender a produção antes de comprar aquilo, o que está por trás. Além do uso e o descarte adequados do produto. No Instituto Akatu, a gente gosta de comentar sobre as cinco perguntas do consumo consciente, para que justamente as pessoas comecem a refletir sobre as escolhas delas. Uma vez que você começa, seja no consumo do alimento do dia a dia, inevitavelmente vai começar a refletir no consumo de roupas, de eletrônicos.Quais são essas perguntas?A primeira delas é por que comprar. É importante a gente refletir se realmente precisa comprar aquilo ou se é só um impulso do momento. A segunda é o que a gente vai comprar. Para comprar aquilo que vai atender mesmo as nossas características, para não ter que devolver ou ter que comprar outro produto porque aquele não atendeu. E como a gente compra. Pensar não só no transporte, se vai comprar online, se vai buscar. Mas também em como vai pagar, se é à vista, a prazo, o quanto vai afetar o nosso orçamento do mês. E de quem vai comprar. Acompanhar algumas informações de marcas e empresas é fundamental, porque muitas vezes vai existir mais de um produto que pode atender às nossas necessidades. Se puder priorizar uma empresa que se alinhe mais com os nossos valores ou que tenha práticas mais sustentáveis, podemos apoiar essas empresas. Por fim, como usar. Sempre que comprar um produto, tentar dar a maior vida útil possível para ele, usando de forma adequada, cuidando, fazendo manutenção se possível para que consiga extrair ao máximo dele. E, ao final dessa vida útil, também descartá-lo da forma correta. É muito importante, no momento da compra, já pensar, que caso tenha que descartar esse produto, como vai fazer para que não descarte no meio ambiente gerando mais impacto.As compras pela internet estão se tornando cada vez mais comuns, mas esse hábito também traz impactos para o meio ambiente. Quais são as principais consequências e existem projetos para mitigar esses danos?As compras pela internet realmente vieram para ficar. O que podemos dizer é que ela tem prós e contras. Quando falamos das consequências, a entrega desses produtos têm uma emissão de gases de efeito estufa proveniente principalmente do transporte. Muitas vezes esses produtos podem vir de longe, tem um deslocamento bem significativo. Muitas vezes esses produtos vêm com embalagem em excesso para proteção. É mais resíduo que você gera. Aí, por conta disso, também muitas vezes o descarte desse monte de embalagens acaba sobrecarregando o sistema. O consumo de energia também pode ser bastante relevante nos centros de distribuição e armazenamento desses produtos. É muito comum esses e-commerces terem esses centros para facilitar a logística. São grandes centros que consomem muita energia para armazenar esses produtos. Também têm a devolução. Temos uma alta taxa de devolução dos produtos e isso pode aumentar o impacto no meio ambiente. Afinal, tem o impacto do transporte e vai ter o impacto de novo desse transporte para devolver o produto. Por outro lado, algumas alternativas vêm sendo trabalhadas. É muito mais eficiente, por exemplo, a gente receber as compras de uma vez só do que recebê-las separadamente. É comum as pessoas fazerem aquelas pequenas compras várias vezes ao longo da semana, do mês. E aí ela recebe um produto amanhã, depois recebe outro. É muito melhor, se possível, fazer uma compra só e pegar tudo de uma vez. Muitas empresas também estão buscando reduzir ao máximo as embalagens. Por mais que tenham uma função importante de proteção do produto, dá para avaliar de fato o quanto é necessário e quanto é excesso. E também optar por embalagens reutilizáveis, recicláveis. Além da logística. Muitas empresas trabalham essa logística de forma mais eficiente. Elas facilitam a devolução utilizando os mesmos veículos de entrega. Tem também a logística entre empresas, usando veículos compartilhados.Você considera que, hoje, os consumidores estão mais conscientes sobre as práticas ambientais e sociais das empresas? E como as empresas têm se adaptado a essa nova realidade?É fato que os consumidores têm se tornado mais conscientes com as práticas de sustentabilidade. A gente tem visto muito isso nas nossas pesquisas. A gente realiza, desde 2019, uma pesquisa chamada Vida Saudável e Sustentável para entender os hábitos dos consumidores, o que eles têm buscado, o que têm visto das empresas…Citando nosso resultado mais recente, de 2024, gente viu que 78% dos consumidores brasileiros querem reduzir o impacto do consumo sobre o meio ambiente e a natureza. Por volta de 82% sentem uma grande preocupação com os danos atuais e futuros ao meio ambiente. Ou seja, a gente vê que esse consumidor está cada vez mais preocupado. Temos outros resultados, desde de 2019, mostrando que grande parte dos consumidores, e aqui falo mais de 80%, esperam que as empresas garantam que seus produtos são seguros e saudáveis, que tratam os funcionários de maneira adequada, que reduzam o seu impacto no meio ambiente. Enfim, as pesquisas têm reforçado que os consumidores estão mais atentos para essas práticas. No caso das empresas, a gente vê que elas também estão se adaptando a isso muito pela questão da demanda. Uma vez que os consumidores passam a olhar essas questões, as empresas acabam investindo nessas práticas de sustentabilidade. Aí a gente fala, por exemplo, em redução da pegada de carbono, maior transparência das informações, investimento em projetos sociais. Temos visto, inclusive, um aumento no número de alegações de sustentabilidade nos produtos. Hoje em dia, os produtos têm mais alegações no rótulo sobre atributos de sustentabilidade, que o produto é sustentável, é reciclável.A prática conhecida como greenwashing ainda preocupa?Com certeza. Inclusive, uma pesquisa deste ano, realizada pela Market Analysis com o apoio do Instituto, identificou que 85% das alegações ambientais nos produtos são falsas ou enganosas. Ou seja, um percentual muito alto das alegações são de alguma forma consideradas greenwashing. O interessante é que essa pesquisa já foi realizada antes, há cerca de 10 anos, e o percentual foi muito próximo, em torno de 83%. Ou seja, dá para traçar um panorama que, apesar da gente cada vez mais conversar sobre greenwashing e transparência, as práticas não evoluíram na mesma proporção que o discurso está presente no dia a dia. A gente vê como preocupação isso porque, por mais que esteja discutindo bastante o tema, constata que ele é muito presente nos produtos.A água continua sendo a principal preocupação no consumo consciente no Brasil? Como está a situação atual desse recurso vital no país?Acredito que isso possa variar um pouco de acordo com a região, principalmente quando a gente fala do Brasil. A gente tem, por exemplo, a região Norte com abundância desse recurso e outras regiões com grande escassez. Mas a água vem sendo uma das principais fontes de preocupação dos brasileiros. Isso também é reforçado pelas pesquisas que temos feito. Ficou constatado que a escassez de água potável era um problema muito sério para 79% dos brasileiros, e a poluição de águas para 86%. No ano passado, a gente identificou que 39% dos brasileiros passaram a utilizar menos água por conta das mudanças climáticas. Isso reflete a preocupação no uso desse recurso. Apesar de sermos um país que tem água em abundância, continuamos tendo desafios de acesso, qualidade e gestão desse recurso. Aproveito para deixar uma sugestão: o Instituto Acatu produziu alguns guias, nos últimos anos, voltados para alguns recursos específicos que se chama “Primeiros Passos”. E um desses guias é voltado para a água e tem algumas dicas de como consumi-la de forma consciente. São dicas simples e o contexto com dados. Um dos dados que tenho lá, e que gosto de citar bastante, é que por volta de 40% da água captada para ser utilizada, é perdida na distribuição, através de vazamentos. Acredito que a maioria dos consumidores não têm essa noção. De toda a água que a gente extrai, só 60% dela chega mesmo a ser utilizada. Isso é para ver o quanto ainda precisa evoluir para poder utilizar melhor esse recurso que é cada vez mais escasso.O Akatu é uma organização que promove a sustentabilidade por meio do consumo consciente. Como esse trabalho é colocado em prática no dia a dia?Nós, como organização, atuamos principalmente nas frentes de comunicação e educação. Mas essas frentes se desdobram em várias vertentes. Por exemplo, a gente trabalha bastante com a parte de instrumentação e transparência para a sociedade, com o objetivo de gerar conhecimento, conteúdo, dados, tendências voltadas ao consumidor. Fornecemos isso para que as pessoas adquiram esse conhecimento e tenham mais dados disponíveis. Fazemos bastante também o assessoramento estratégico, principalmente para empresas e também para associações setoriais. Buscamos sempre trazer a lente do consumo consciente para essas empresas, nas práticas e projetos delas. E a gente tem atuado com associações justamente para ter um impacto maior, porque daí envolve várias empresas de uma vez. Na educação, trabalhamos nas escolas desde o ensino fundamental, com os educadores, também em redes públicas. O que não impede de ser uma educação nas empresas, junto aos colaboradores. Além da nossa atuação em políticas públicas. É uma atuação que não temos em grande escala como as outras, mas vem tentando trabalhar. E, na comunicação, a influência em redes no geral, lidando com influenciadores, juventude, sociedade civil, redes digitais. Atuamos como influenciador mesmo, fornecendo esse conhecimento de forma transparente, didática e clara para a sociedade. Esses são alguns pilares que tentamos trabalhar o viés do consumo consciente no dia a dia das pessoas.Raio-XPorta-voz do Instituto Akatu, Bruno Yamanaka é engenheiro ambiental, pós-graduado em Meio Ambiente e Sustentabilidade pela FGV e multiplicador B. Atua nas áreas de pesquisa, comunicação e engajamento para a sustentabilidade. Participou de diversos projetos socioambientais e acredita que qualquer ação, independentemente do seu tamanho, representa um passo importante em direção a um estilo de vida mais sustentável. Com experiência no setor de resíduos, tem apreço pela disseminação de conteúdo e pelo uso de dados voltados à sensibilização do consumidor.
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