Publicado no Consultor Jurídico (ConJur), portal mais influente do meio jurídico no Brasil, o artigo do jurista Rui Badaró, secretário-geral da OAB-SP, contesta a nova lei que restringe a cidadania italiana por “vínculo cultural” e analisa a decisão inédita do juiz Fabrizio Alessandria, do Tribunal de Turim, que enviou o caso à Corte Constitucional.
Para Badaró, cidadania é direito humano, não concessão do Estado.
Leia o artigo na íntegra:
Absurdo jurídico sobre cidadania italiana vai à Corte Constitucional
Quando a transcrição de nascimento vira campo de batalha hermenêutico
Pois bem. Comecemos pelo óbvio que, ao que parece, não é tão óbvio assim. Quando o magistrado de Torino Fabrizio Alessandria, em sua decisão interlocutória (ordinanza) de 25 de junho de 2025, afirma que “L’atto di nascita è valido secondo la legge dello Stato estero in cui è stato redatto, ed è conforme alla nostra nozione di ordine pubblico”, ele não está fazendo mera subsunção. Não! Está operando aquilo que a Crítica Hermenêutica do Direito chama de applicatio — esse momento hermenêutico em que o intérprete se depara com a tradição e precisa decidir se a mantém ou a rompe.
Vejam bem: a recusa administrativa em transcrever um ato de nascimento sob o pretexto de “ausência de vínculo cultural” é sintoma daquilo que Lenio Streck tem denunciado com precisão cirúrgica — o solipsismo judicial (aqui, administrativo) que acredita poder atribuir sentidos conforme sua vontade de poder. Como bem alerta o jurista gaúcho em sua Crítica Hermenêutica do Direito, o problema é sempre o mesmo: o intérprete que se coloca como senhor absoluto dos sentidos, ignorando que o Direito não é aquilo que queremos que seja. É o velho problema do ser-no-mundo mal compreendido: o administrador público julga-se senhor dos sentidos, esquecendo que está lançado em uma tradição jurídica que o antecede e o constitui.
O que temos aqui? Uma questão de princípio — a coisa mesma. O Direito Internacional Privado não é um conjunto de regras técnicas para resolver conflitos de leis no espaço. É, antes de tudo, um modo de ser-no-mundo-jurídico que reconhece a alteridade normativa sem colonizá-la. Quando a Corte di Cassazione (Sez. I, nº 4466/2009) já havia sedimentado esse entendimento, temos a história efeitual — a história dos efeitos do texto normativo que não pode ser simplesmente ignorada por um ato de vontade administrativa.
A invocação da Convenção da Haia de 1961 não é, portanto, mero argumento de autoridade. É o reconhecimento de que habitamos um mundo jurídico compartilhado, onde a pretensão de validade dos atos jurídicos transcende as fronteiras do Estado-nação — esse Leviatã que, ao que parece, ainda não percebeu que o século 21 chegou.
Constituição italiana resiste: quando direitos viram favores
Aqui reside o ponto nevrálgico da questão. Quando o juiz mobiliza os artigos 3, 10 e 117 da Constituição italiana, ele não está fazendo constitucionalismo ornamental — essa praga que assola o Direito brasileiro e, ao que parece, também quer contaminar o italiano. Não! Ele está fazendo o que todo juiz deveria fazer (e creio, faz!): levar a Constituição a sério.
Prestem atenção no que diz o magistrado: “Non è giuridicamente tollerabile una retroazione normativa che condizioni il riconoscimento di uno status già maturato sotto la vigenza di altra disciplina”. Isto é hermenêutica constitucional em seu estado mais puro! É a compreensão de que o tempo jurídico não é linear, mas kairológico — há momentos de ruptura que não podem retroagir para apagar o que já se constituiu no mundo da vida.
A Lei 74/2025, ao tentar impor critérios culturais e territoriais para o reconhecimento da cidadania jure sanguinis, comete o pecado capital do constitucionalismo: transforma o que é direito em concessão, o que é reconhecimento em benesse. É a velha história do Estado que se julga proprietário dos direitos fundamentais, distribuindo-os conforme sua conveniência política.
Mas — e aqui está o busílis da questão — a Constituição não é um texto à disposição do legislador ordinário. Ela é uma ordem-quadro que estabelece os limites do possível jurídico. Quando o artigo 3º fala em igualdade, não está autorizando o legislador a criar castas de cidadãos — uns mais italianos que outros, como se estivéssemos em alguma distopia orwelliana.
O princípio da legítima confiança (affidamento legittimo) invocado pelo juiz é, no fundo, o reconhecimento de que o Direito opera com promessas — e promessas jurídicas não podem ser quebradas ao sabor dos ventos políticos. Isso é Estado Democrático de Direito. O resto é autoritarismo travestido de legalidade.
Cidadania é direito humano, não concessão estatal
Atenção para este ponto, porque aqui a coisa fica filosoficamente densa. Quando o magistrado cita o artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos — “ogni individuo ha diritto a una cittadinanza” e “nessuno può essere arbitrariamente privato della propria cittadinanza” – ele não está fazendo retórica humanitária. Está reconhecendo aquilo que a fenomenologia jurídica há muito percebeu: a cidadania é modo de ser, não de ter.
Vejam o que diz o juiz: “Imporre ex post condizioni per il riconoscimento di uno status che discende da un legame di sangue significa privare una persona della sua cittadinanza in modo arbitrario.” Isto é Levinas aplicado ao Direito! É o reconhecimento de que o Outro (o descendente de italiano) tem um rosto que me interpela e ao qual não posso negar reconhecimento sem cometer violência ética.
O caso Warsame c. Canada (2009) citado não é mero precedente. É a confirmação de que existe um éthos jurídico global que transcende as pequenas mesquinharias burocráticas dos Estados. Quando o Comitê de Direitos Humanos da ONU estabelece que requisitos arbitrários violam o artigo 24 do Pacto Internacional, está dizendo: há limites para a discricionariedade estatal. E esses limites são ontológicos, não meramente normativos.
A cidadania como direito humano fundamental não é, portanto, uma concessão generosa do Estado. É reconhecimento de algo que já está aí, no mundo da vida. É ser-aí-cidadão que não depende da boa vontade administrativa para existir.
Tratados internacionais versus legislação doméstica: o confronto inevitável
E chegamos ao ponto nevrálgico da decisão. O artigo 117 da Constituição italiana não é mera regra de competência. É o que chamo de “janela hermenêutica” — um dispositivo que permite à Constituição respirar o ar do mundo, sem se asfixiar no provincianismo jurídico.
Quando o juiz afirma que “Non può una legge ordinaria — come la L. 74/2025 — disattendere convenzioni internazionali e norme pattizie che tutelano il diritto alla cittadinanza come elemento fondamentale della persona”, ele está operando uma verdadeira fusão de horizontes entre o direito interno e o internacional.
A Convenção Europeia de Nacionalidade de 1997 não é, aqui, mero ornamento argumentativo. É parte da pré-compreensão que constitui o intérprete no momento da decisão. O juiz não pode fingir que ela não existe, como se pudesse escolher suas fontes ao bel-prazer.
Isto é o que chamo de “constitucionalismo cosmopolita” — não no sentido ingênuo de um governo mundial, mas no sentido hermenêutico de reconhecer que habitamos um mundo jurídico compartilhado, onde as fronteiras normativas são porosas e os direitos fundamentais circulam como moeda forte.
Paradoxo do sangue sem cultura: biopolítica à italiana
A decisão de Torino revela algo fundamental: um magistrado que aplicou o Direito em sua integridade constitucional. Simples assim? Não, complexo assim. Porque aplicar o Direito, em tempos de exceção administrativa disfarçada de normalidade democrática, é ato de resistência.
A ordinanza não é sobre transcrição de nascimento. É sobre o que significa pertencer. É sobre a diferença entre ser reconhecido e ser tolerado. É sobre a distância abissal entre cidadania como direito e cidadania como favor.
Quando o Estado italiano tenta transformar o jus sanguinis em jus culturae através de uma lei ordinária, está operando o estado de exceção: a suspensão da ordem jurídica em nome da ordem jurídica. É o paradoxo do soberano que se coloca acima da lei para, supostamente, proteger a lei.
Mas a Constituição resiste. Os tratados resistem. E o Judiciário, quando exerce sua função constitucional, também resiste. A decisão de Torino demonstra que o Direito não é o que o poder quer que seja, mas o que a integridade do sistema jurídico exige que seja.
No fim das contas, a lição é cristalina como água de montanha: não há povo sem pertencimento, não há pertencimento sem reconhecimento, e não há reconhecimento sem Direito. E quando o Direito encontra o sangue – não o sangue da exclusão, mas o sangue da filiação — o que temos é cidadania. O resto é biopolítica. E biopolítica, como sabemos desde Foucault, é sempre sobre quem pode viver e quem deve (simbolicamente) morrer.
A decisão de Torino disse: aqui, o Direito ainda respira. Que assim seja.
Rui Badaró é doutor em Direito Internacional pela Universidad Catolica de Santa Fe, presidente do Conselho da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, secretário-geral da Comissão de Comércio Exterior da OAB-SP.
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