Viajar para a Mongólia foi uma experiência profunda e completamente fora da caixa.
Uma travessia que nos conectou com paisagens imensas, tradições nômades e com uma civilização que, por mais de 400 anos, dominou o mundo e antecipou muitos conceitos que usamos até hoje.
O Império Mongol, fundado por Gêngis Khan no século XIII, foi o maior império contíguo da história, estendendo-se da China à Europa Oriental. Muito além da fama de exército brutal, os mongóis foram visionários em estratégia, inovação, governança e diplomacia.
Inventaram o uso do estribo, que revolucionou a cavalaria pesada, e estruturaram um sistema militar descentralizado, baseado na meritocracia tanto no campo de batalha quanto na administração. Criaram um modelo eficiente de cobrança de impostos, respeitando culturas locais, e estabeleceram a Pax Mongolica, garantindo segurança nas rotas comerciais.
Com isso, a Rota da Seda floresceu e o mundo passou a se conectar como nunca. Pessoas, ideias e mercadorias circulavam com o apoio de uma rede de correios veloz e um “passaporte” chamado gerege, que oferecia livre trânsito — um precursor dos vistos modernos.
Promoveram o conhecimento reunindo médicos, astrônomos e engenheiros de diferentes culturas. Com notável tolerância religiosa, permitiram a convivência entre muçulmanos, budistas, cristãos e confucionistas, mantendo líderes locais no poder desde que fossem competentes.
Após dois séculos sob domínio manchu, a Mongólia adotou o comunismo com forte influência soviética, tornando-se uma democracia apenas em 1991. Os anos 90 foram marcados por instabilidade, recessão e desemprego, agravados pela retirada abrupta do apoio da URSS, que sustentava grande parte do PIB.
Entre 2000 e 2012, o país viveu um boom da mineração (cobre, ouro e carvão), acompanhado por desafios como desigualdade, corrupção e urbanização desordenada. Ulaanbaatar, a capital, reflete esses contrastes: trânsito caótico, prédios soviéticos sem estética ao lado de arranha-céus modernos, carros com volante dos dois lados e poluição agravada pelo uso de carvão para aquecimento.
O turismo ainda engatinha, e a economia se sustenta principalmente pela mineração, pecuária extensiva, lã e cashmere de altíssima qualidade. Marcas como Loro Piana, Brunello Cucinelli e Hermès importam a matéria-prima mongol pela sua pureza incomparável.
Conversamos com autoridades e empresários, e foi possível perceber tanto oportunidades quanto grandes obstáculos. Com apenas 3,5 milhões de habitantes, o país depende de importações em quase todos os setores. Apesar do sistema democrático, o populismo e a corrupção ainda são predominantes. O alcoolismo urbano é preocupante, e o padrão de serviço no turismo ainda é precário — bebidas quentes, atendimento demorado e pouco domínio do inglês são comuns.
Mesmo com incentivo à natalidade, a Mongólia é o segundo país com menor densidade demográfica do mundo, atrás apenas da Groenlândia.
É fora da capital que a alma do país se revela.
Mais de 30% da população ainda vive de forma nômade, e a sensação é de estar em outro tempo e espaço.
No Deserto de Gobi, nos hospedamos no Three Camel Lodge — um ecolodge charmoso com gers elegantes, cercado por silêncio, céu estrelado, montanhas ao fundo e estepes sem fim. O Gobi não é um deserto de dunas, mas uma imensidão de campos secos com grama baixa, rebanhos e tendas móveis.
Visitamos os Flaming Cliffs (Bayanzag), um dos sítios paleontológicos mais importantes do mundo, onde foram encontrados os primeiros ovos fossilizados de dinossauros.
Vivenciamos tradições locais: tomei leite de égua, visitamos famílias nômades e conhecemos sua cultura. Em Ölgii, na região cazaque, montaram um acampamento exclusivo de gers para nosso grupo, e sua região com lindas montanhas e lagos nos proporcionou hikings maravilhosos.
A vida nômade pulsa. Os gers são desmontados e remontados até quatro vezes por ano, de acordo com o clima, o pasto e a água. Vivem com e pela natureza.
A hospitalidade é sagrada: chá com leite salgado, laticínios fermentados, carne seca e arroz com carneiro são servidos com orgulho. A dieta é simples, funcional e energética — pensada para resistir ao frio e às longas jornadas.
O camelo de duas corcovas, símbolo nacional, impressiona pela força e resistência. É usado para transporte, leite e lã. Custa cerca de US$ 800 na Mongólia, enquanto no Oriente Médio pode ultrapassar US$ 50.000.
O cavalo mongol, pequeno, robusto e valente, vive solto, mas próximo ao seu dono. A conexão com seus criadores é espiritual — vê-los galopando pelas estepes é como assistir ao vento em movimento.
As práticas de arco e flecha, luta, corrida de cavalos, o morin khuur (violino de cabeça de cavalo) e o canto gutural são expressões vivas de uma cultura milenar celebrada no Festival Naadam. Músicas, trajes e rituais conectam passado e presente com orgulho.
Durante a viagem, conhecemos xamãs, templos budistas, conselheiros do governo e famílias nômades. A pluralidade religiosa — budismo tibetano, xamanismo, islamismo (entre os cazaques) e cristianismo — convive de forma surpreendentemente harmônica.
A democracia está consolidada, mas o país ainda enfrenta os efeitos do populismo. O governo incentiva a natalidade e começa a falar em sustentabilidade, inspirado na sabedoria nômade, que há séculos vive em equilíbrio com a terra.
Não há fome nem pobreza extrema. O grande desafio é equilibrar tradição e futuro.
Apesar das cicatrizes do comunismo e das pressões da globalização, os mongóis mantêm vivo o legado de Gêngis Khan. Jovens estudam fora e retornam com ideias novas, sem romper com suas raízes.
China e Rússia são seus principais parceiros comerciais, mas a afinidade cultural é maior com os russos. Os chineses são malvistos. Os japoneses são admirados, e os sul-coreanos servem de modelo estético e aspiracional.
Há nuances regionais marcantes: os nômades do Gobi são introspectivos e espirituais; os cazaques do oeste, muçulmanos, são calorosos, sorridentes e extremamente acolhedores, mesmo enfrentando invernos de até –40 °C. Ambos vivem com sabedoria e respeito profundo pelo ritmo natural da vida.
A Mongólia busca seu lugar no mundo: entre dois gigantes geopolíticos, entre o passado comunista e um futuro incerto, entre a tradição nômade e a globalização.
Foi uma das viagens mais transformadoras da minha vida — um mergulho na essência de um povo, na força bruta da natureza e em valores que o tempo não apagou.
Melhor ainda foi compartilhar tudo isso com pessoas queridas, curiosas e animadas.
Foi especial. Foi inesquecível.
O post De Gêngis Khan às Estepes Eternas: A Mongólia que encanta por Julie Lamac apareceu primeiro em RSVP.