
Série de reportagens do g1 explora a importância da Estrada de Ferro Sorocabana (EFS), as lembranças de quem fez parte dela e o futuro por meio do turismo e da retomada do transporte de cargas e passageiros. Iniciada há 150 anos, ferrovia Sorocabana vive de passado glorioso e marcas do abandono
“Senhores! Entrego-lhes hoje a Estrada de Ferro Sorocabana! É a imagem do progresso!” (Luiz Matheus Maylasky)
Há 150 anos, um apito se fez ouvir em Sorocaba (SP) com a chegada do primeiro trem à cidade. Chegava também um novo tempo: o da Estrada de Ferro Sorocabana (EFS), idealizada pelo empresário Luiz Matheus Maylasky para ligar a capital paulista até a Real Fábrica de Ferro de São João de Ypanema (atual Iperó) e que se tornou uma das ferrovias mais importantes do Brasil.
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O início da ferrovia marca uma das mudanças de ciclos da transformação de Sorocaba, como lembra o historiador Carlos Carvalho Cavalheiro. “Foi quando a cidade optou por um modelo burguês de desenvolvimento, deixando de lado práticas econômicas anteriores, como o tropeirismo”, lembra. Um olhar visionário de quem veio ao Brasil empreender.
Monumento a Luiz Matheus Maylasky em Sorocaba
Stephanie Fonseca/g1
Maylasky era engenheiro e militar nascido em Kosice, na atual Eslováquia. No Brasil, enxergava nas ferrovias o caminho para o progresso. Sua proposta inicial de ligar Sorocaba a São Paulo para fomentar a economia do algodão encontrou resistência entre os empresários da época, que defendiam uma outra rota, entre Itu e Jundiaí.
“Ele participou de uma reunião em Itu, onde propôs uma ferrovia passando por Sorocaba. Foi ignorado pelos presentes. Então, ele saiu da reunião e decidiu: ‘Vou fazer a minha própria estrada de ferro'”, conta Cavalheiro.
Sacou do bolso, conforme os registros históricos, duas moedas de 20 réis, conhecidas como vinténs, e anunciou: “Aqui está o primeiro capital subscrito. Com estes dois vinténs levantaremos o capital necessário”.
Carlos Carvalho Cavalheiro, historiador
Arquivo Pessoal
A ousadia atraiu apoiadores e a simpatia do governo imperial, que outorgou à Companhia Sorocabana de Estrada de Ferro de Ypanema a São Paulo a permissão e as garantias necessárias. As obras foram iniciadas em 1872 e, três anos depois, o primeiro trecho de 110 quilômetros foi oficialmente inaugurado.
“A visão de Maylasky ia além da logística. Ele apostava no surgimento de uma nova cidade mais conectada e alinhada com os valores do progresso”, pontua o historiador. Nesse sentido, a própria estação ferroviária, hoje desativada e em mau estado de conservação, é um símbolo disso: trata-se do primeiro imóvel construído em tijolos no município.
Estação de Sorocaba em 1880
Julio Durski / Arquivo Nacional
Tracionado por uma pequena locomotiva a vapor importada da Bélgica, o primeiro trem chegou a Sorocaba, oficialmente, por volta das 15h de 10 de julho de 1875. Trazia consigo o empresário Luiz Matheus Maylasky e o presidente da Província de São Paulo (cargo equivalente ao do governador do estado), Sebastião José Pereira, ambos acompanhados por autoridades e convidados.
A chegada do trem foi um grande acontecimento na cidade, com direito a espectadores posicionados em camarotes montados em frente à estação. Bandas musicais recepcionaram os pioneiros viajantes, que iniciaram a viagem na estação de São Paulo às 8h30 e realizaram parada em Barueri para comemorações.
“Às 3 horas da tarde chegou a Sorocaba o trem inaugural. A estação daquela cidade estava lindamente preparada para festejos, com bandeiras, flâmulas e galhardetes; nas imediações estavam armados oito coretos; em frente ao edifício da Estação, em uma vasta galeria de duzentos camarotes, imenso concurso de senhoras assistia e abrilhantava a festa; próximo à Estação, abrangendo as duas linhas de trilhos, erguia-se um arco triunfal com as inscrições “São Paulo – Sorocaba – Ypanema” e outras em referência ao dia e ao fato que se festejava, a Companhia Sorocabana e seu presidente, o sr. Maylasky. A chegada do trem inaugural foi estrepitosamente saudada com aclamações entusiásticas, salvas de foguetes, e com os sons festivos de oito bandas de música. Imediatamente seguiu-se a cerimônia da bênção da estação de Sorocaba pelo sr. cônego Gonçalves”. (Jornal O Estado de São Paulo, 17 de julho de 1875)
Caminhos para o interior
Oficinas ferroviárias de Sorocaba foram as maiores da América do Sul
Conforme Rafael Prudente Correa, historiador e consultor em patrimônio ferroviário, a Estrada de Ferro Sorocabana teve um papel importante e decisivo no desenvolvimento de Sorocaba e do estado de São Paulo.
Isso a tornou uma das maiores ferrovias do Brasil, chegando a uma rede de trilhos com 2.172 quilômetros de extensão no seu ápice, em 1959.
Rafael Prudente Correa, historiador e consultor em patrimônio ferroviário
Arquivo Pessoal
“A cidade não só deu nome à companhia, mas recebeu as grandes oficinas da Sorocabana no fim da década de 1920. Isso gerou emprego, serviços e impulsionou a urbanização”, relembra. Em seu auge, aquele parque técnico chegou a ser o maior da América Latina.
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Após um início de percalços, que levaram à destituição de Maylasky do comando da companhia, em 1880, a Sorocabana passou a mirar as zonas produtoras de café a noroeste de Sorocaba, chegando a Tietê em 1883; a Botucatu em 1889; e a Itapetininga em 1895. Em 1892, funde-se com a Ytuana, sendo constituída a Companhia União Sorocabana Ytuana (CUSY), que vai à falência em 1904.
EFS chegou a Bauru em 1905
Reprodução / Museu Ferroviário Regional de Bauru
A ferrovia passa, então, a ser administrada pelo governo federal, que, em 1905, a transfere para o estado de São Paulo, ano em que a ferrovia chega a Bauru. Em 1907, a empresa é arrendada à Brazil Railway Co., dirigida pelo norte-americano Percival Farquhar, que constrói os prolongamentos da linha tronco até Presidente Bernardes e dos ramais de Itapetininga a Itararé e de Indaiatuba a Campinas.
Em 1919, retorna à administração estadual, iniciando o período de maior desenvolvimento de sua história. Em 1922, chegou ao porto de Presidente Epitácio, às margens do Rio Paraná, e em 1937 finaliza a obra da tão sonhada ligação Mairinque a Santos, uma das maiores obras da engenharia ferroviária nacional e responsável por quebrar o monopólio da São Paulo Railway, primeira ferrovia do Estado, no acesso ao porto.
“Ela foi pensada com visão de futuro, bitola larga e preparada para via dupla. Hoje, essa linha é o principal corredor de exportação do agronegócio brasileiro pelo Porto de Santos”, destaca Rafael.
Ferrovia Mairinque-Santos foi um marco para a engenharia ferroviária nacional
Vanderlei Paulini / Fepasa / MPF-Sorocabana
Ligações estratégicas
A Estrada de Ferro Sorocabana (EFS) também teve sua importância na Revolução de 1932, quando soldados paulistas usaram da linha para ir ao front, e usaram o Trem Blindado, construído nas oficinas da ferrovia em Sorocaba. Ficou conhecido como o “Fantasma da Morte”.
“Sorocaba mandou voluntários para os campos de batalha, e a ferrovia foi usada para transporte de tropas, alimentos e armas. Era uma ligação estratégica”, afirma Carlos Cavalheiro.
Trem Blindado da EFS atuou em batalhas da Revolução de 1932 na região de Itapetininga
Reprodução / livro “Trem Blindado”, Penteado Médici
O envolvimento da população foi além dos trilhos. “Tivemos mulheres como a professora Francisca Silveira Queiroz, que mobilizou pessoas para ajudarem os soldados, e Ana Maria Bellucci, que criou um batalhão feminino de retaguarda”, conta o historiador.
Antes disso, a ferrovia teve participação no movimento abolicionista. “Ferroviários de Sorocaba ajudaram a transportar escravizados fugidos até São Paulo, com apoio de maçons ligados à causa, como o próprio Maylasky”, relata Cavalheiro.
Declínio e abandono
Antiga Sorocabana passou a ser administrada pela Fepasa entre 1971 e 1998
O declínio da Estrada de Ferro Sorocabana coincide com a estruturação das rodovias, a partir dos anos 1960. A partir do ponto máximo de expansão da sua malha, a ferrovia começa a “encolher”, fechando ramais e deixando de atender várias cidades.
“A ferrovia é um transporte barato e eficiente para grandes volumes. O Brasil trocou isso por um modelo rodoviário por conta de planos de governo de curto prazo”, critica Rafael Correa. “Mas não foram as montadoras e, sim, transportadoras e sindicatos de caminhoneiros que pressionaram para a priorização das rodovias”, observa.
Em 1971, a antiga Sorocabana foi uma das cinco ferrovias paulistas que formaram a Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa), entregue ao governo federal em 1998 como parte da renegociação da dívida do estado com a União. Dividida e entregue a vários consórcios privados, atualmente, tem grande parte da sua extensão abandonada, com estações desativadas e trilhos inativos.
Mas os seus 150 anos, hoje, servem como marco de um passado glorioso que ainda pode apontar para o futuro. “Precisamos pensar em ferrovias como plano de Estado, com visão de longo prazo. Não dá para decidir o transporte de um país em ciclos eleitorais de quatro anos”, conclui Rafael.
150 anos depois, antiga ferrovia Sorocabana está desativada em grande parte da sua extensão
Eric Mantuan / g1
Prédios da antiga Fepasa estão em ruínas em Sorocaba
Anderson Cerejo/TV TEM
Em Itapetininga, antiga oficina ferroviária da EFS não tem mais trilhos e sofre com o abandono
Carla Monteiro / g1
*Colaborou sob supervisão de Eric Mantuan
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