
Casa construída com garrafas de vidro levou um ano e meio para ser erguida na Ilha de Itamaracá, no Grande Recife
Acervo pessoal
Localizada a cem metros do mar, a “Casa de Sal”, feita com garrafas de vidro recolhidas do lixo em Itamaracá, no Grande Recife, está de pé há quase quatro anos. Ao g1, a produtora de moda Maria Gabrielly Dantas, responsável pela obra ao lado da mãe, a educadora ambiental Edna Dantas, disse que, no início, os vizinhos desconfiavam da empreitada, pensando que o imóvel ia desabar.
“No começo, todo mundo ficava com pé atrás, assim, chamava a gente de doida, falava: ‘Nossa, nunca vi isso'”, contou.
Hoje a moradia, que tem uma fossa biodegradável e telhado de material reutilizado, também é um espaço de ecoturismo. Segundo o engenheiro civil Rogério Carvalho, a iniciativa é “excelente” e pode ser viável e segura, mas precisa de mais estudos para que possa ser replicada em larga escala (saiba mais abaixo).
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A construção começou no dia 1º de maio de 2020 e levou um ano e meio para ser concluída, na Praia do Sossego (veja vídeo abaixo). Segundo Gabrielly, num primeiro momento, elas contaram com o apoio de duas famílias, que embarcaram na ideia mesmo sem ter tanta certeza se daria certo.
“Era muito bom, porque as duas famílias que, no começo, ajudaram a gente, eram essas pessoas. Elas ficavam tipo: ‘olha, elas são doidas, mas vamos ajudar as doidas, porque depois eu quero ver'”, afirmou.
Mãe e filha constroem casa sustentável com garrafas de vidro em Itamaracá
De acordo com a produtora de moda sustentável, ela e Edna fizeram, sozinhas, uma boa parte da obra, incluindo as paredes e os espaços internos da casa, que tem sete cômodos. Já os vizinhos ajudaram, principalmente, na montagem do piso e do telhado, feito com material reutilizado.
As garrafas entraram no lugar dos tijolos, sendo posicionadas de forma vertical nas paredes. Foram utilizadas oito mil, ao todo. Todas elas tinham sido retiradas entre os resíduos despejados nas ruas ou estavam prestes a ser descartadas irregularmente numa cidade onde apenas 16% da população tem acesso à rede de esgoto e 36,19% dos moradores não contam com coleta de lixo regular.
“Sinto que a juventude negra é muito empurrada para a gente se envergonhar dos processos de reciclagem. É tipo a mãe ir no bazar comprar uma calça, uma blusa bonita para gente e, se alguém elogiar, ter vergonha de dizer que foi do bazar, do brechó […]. Esse estigma é muito colocado a partir da classe da raça e do gênero. Quando você vê uma pessoa super rica fazendo isso, ela é intitulada com uma pessoa visionária, com uma pessoa é extremamente ecológica”, declarou Maria Gabrielly.
Aos poucos, à medida que a moradia foi ganhando terreno, mais pessoas da comunidade se engajaram na proposta. Alguns vizinhos ajudaram a recolher as garrafas enquanto outros doaram itens e estruturas domésticas, como janelas, para contribuir com a obra. Segundo Gabrielly, o custo de construção, em comparação com as obras convencionais, foi cerca de 35% a 40% menor.
“Foi se tornando também uma mobilização. A maior parte das garrafas foram recolhidas. Mas chegou um momento em que o dono do depósito estava cheia de garrafa de 600 ml de cerveja que não estava usando. Doou. Aí a gente teve que pagar uma pessoa para levar até a gente. Foi se tornando também um patrimônio da comunidade. Óbvio que é liderado por nós, mas tem sido abraçado também pelas pessoas”, contou a produtora de moda.
Casa de garrafa, barro e madeira
Produtora de moda Maria Gabrielly Dantas e sua mãe, Edna, construíram uma casa com oito mil garrafas de vidro
Acervo pessoal
A “Casa de Sal” propõe um caminho para se repensarem os modelos de habitação no contexto de mudanças climáticas. E uma resposta para isso, na visão de Edna, está no estilo de vida de populações ancestrais indígenas e africanas que possuem uma relação mais próxima com a natureza.
“A partir da hora em que eu conheço o território de Itamaracá, especialmente a Praia do Sossego, vejo um território com muita magia e muito potente. É um território muito rico, que carrega muita ancestralidade […]. A gente necessita, sim, de um olhar para esses resíduos dentro da pauta da habitação. Porque a gente ainda investe muito dinheiro em habitações tradicionais e já tem um conhecimento muito rico dentro das nossas comunidades”, comentou a educadora socioambiental.
Além do vidro, foram utilizados para a base da construção outros materiais mais tradicionais, como barro, areia, cimento e madeira.
“A gente utiliza barro do próprio terreno para dar liga, porque nosso terreno tem uma um barro argiloso. A gente utiliza também uma base de barro para que a gente utilize menos cimento e menos areia. São paredes externas, a casa ela é duas quedas. […] É quase que uma estrutura de uma palhoça, de uma caiçara, toda na madeira. E é revestida por fora com garrafas, cimento, barro e areia”, explicou Gabrielly.
Afinal, a casa é segura?
‘Casa de Sal’: residência na Ilha de Itamaracá foi construída com garrafas de vidro no lugar de tijolos
Acervo pessoal
De acordo com o engenheiro civil Rogério Carvalho, especialista em novas técnicas de construção e ex-integrante do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea), esse tipo de projeto pode ser seguro, mas, para comprovar se as garrafas de vidro podem ser usados como ferramenta construtiva, é necessário fazer mais testes.
“A iniciativa dela foi excelente. Ela [Edna] buscou produtos descartáveis no ambiente e cita até a casa de taipa, que é muito utilizada no no nosso interior, uma técnica construtiva de dezenas, centenas de anos que utiliza o barro com o resto de madeira que é extraído. Ela tem a noção de construção e usou o vidro como parte sustentável e estrutura da casa. E envolveu esse vidro com argamassa”, disse.
Para o especialista, para que uma técnica de construção possa ser reproduzida em outros empreendimentos, é preciso fazer estudos com base em normativas de instituições como o Crea e o Sistema S.
“Como já são materiais reaproveitados, tinha que aprimorar essa técnica dela para que se tornasse produtiva para poder ver a normatização. Até porque, no caso dela, ela não pegou uniformes, ela pegou diversos tamanhos de garrafa. […] É uma uma técnica artesanal. Então, para se construir em série, ela tem que ser viável produtivamente e ter a normativa”, afirmou.
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