No auge dos anos 1980, Haroldo de Campos e Régis Bonvicino embarcaram em um ônibus ao lado de oito jovens roqueiros rumo a Taubaté, no interior de São Paulo. Os dois poetas concretistas tinham um compromisso: assistir ao show da banda formada por aqueles amigos – um grupo que, anos depois, seria reconhecido como uma das maiores formações do rock brasileiro. Haroldo não conteve e ficou empolgado com a energia crua e inventiva dos Titãs. Ao fim da apresentação, fez uma análise poética e provocadora: enquanto o vocalista Branco Mello tinha uma performance “mais placentária”, Arnaldo Antunes era claramente mais “cubista”. “Eu tinha uma estética de pontas, né? Foi uma descrição muito procedente e muito na mosca sobre como agíamos”, comentou Arnaldo, rindo enquanto reproduzia a antiga coreografia durante uma entrevista por videochamada ao BHAZ.
Quase 45 anos depois, a dança ainda compõe o repertório de Arnaldo Antunes, que desembarca em Belo Horizonte nesta sexta-feira (18) com a turnê ‘Novo Mundo’. No show, ele apresenta o álbum homônimo – o 20º da carreira – lançado em março nas plataformas digitais, e revisita sucessos de sua discografia. A apresentação única ocorre às 21h, no Sesc Palladium, no Centro da capital, com ingressos a partir de R$ 120.
Diferente do show com o qual excursionou por três anos, fruto do disco ‘Lágrimas do Mar’, em parceria com Vitor Araújo e marcado pelo formato voz e violão, a turnê ‘Novo Mundo’ aposta em uma pegada dançante e em uma sonoridade mais pesada. Produzido em parceria inédita com o baterista Pupillo, conhecido pela habilidade em combinar sons elétricos, eletrônicos e acústicos, o álbum mescla batidas intensas com timbres, construções frasais, ritmos e a poesia característica de Arnaldo. “Fiquei com saudades de fazer um show com banda e voltar um pouco para essa pegada. Acho que a turnê com os Titãs também deu um impulso nessa direção de fazer uma apresentação mais vibrante”, afirmou.
Além de Pupillo e Vitor Araújo, que retoma a parceria neste novo trabalho, o guitarrista Kiko Dinucci e o baixista Betão Aguiar integram a formação musical do disco. Nos palcos, os três últimos acompanham Arnaldo ao lado de Chico Salem, Curumin, um quarteto de cordas e Tomé Antunes, filho do artista. O álbum ‘Novo Mundo’ traz ainda colaborações que dialogam com diferentes fases da música – desde parceiros contemporâneos a Arnaldo, como Marisa Monte e David Byrne, até nomes da nova geração, como Ana Frango Elétrico e o rapper Vandal. “Essa formação trouxe uma sonoridade nova, ao mesmo tempo, contemporânea e original. É um disco diferente de todos os outros que já fiz com esse formato de banda”, afirmou.
‘O futuro se tornou uma ameaça’
Em ‘Novo Mundo’, Arnaldo reflete sobre os rumos da humanidade e os dilemas que a atravessam, do avanço da tecnologia e da inteligência artificial às crises ambientais, passando pelas transformações nas relações humanas e econômicas. Logo na faixa de abertura, que dá nome ao disco, o poeta chama a atenção dos ouvintes: “Bem-vindo ao novo mundo / que vai se desintegrar no próximo segundo”. “Estamos vivendo um momento crucial e sem precedentes no que diz respeito à crise climática, chegando ao ponto de não retorno. Ao mesmo tempo, há uma certa intolerância em aceitar essa realidade por parte dos governantes. É como se estivéssemos caminhando para um suicídio coletivo, sem a consciência do que está acontecendo”, contou.
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As reflexões sobre o mundo, que segue cada vez mais hostil, também se evidenciam em canções como ‘Tire o seu passado da frente’ e no rock ‘Tanta pressa pra quê?’, que encerra o disco e é dividida com a esposa dele, Márcia Xavier. Nesta derradeira, o artista, herdeiro do concretismo da MPB, desativa a bomba prestes a explodir ao confrontar o vício contemporâneo nos cristais líquidos das telas, na velocidade de informações e mudanças constantes de assunto: “Não aguento tanto movimento/preciso de paz para sobreviver/todo mundo tem opinião o tempo todo/todo mundo tem algo a dizer”.
“O avanço da extrema-direita acirra a preocupação ambiental, por assumirem posturas negacionistas. Simultaneamente, convivemos com tecnologias e algoritmos que alimentam a violência, o ódio e a intolerância. Soma-se a isso uma economia global voraz e guerras em curso – à beira do que poderia ser chamado de uma Terceira Guerra Mundial. Temos todos os ingredientes para estarmos assustados”, refletiu.
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Se, em alguns momentos, Arnaldo toca na ferida com reflexões ácidas e críticas, em outros, oferece possíveis respostas e condutas diante de um cenário distópico – estende a mão ao ouvinte e aponta brechas de reinvenção. Em ‘Pra não falar mal’, faixa em parceria com Ana Frango Elétrico, o artista propõe acolher a sombra com a luz: “Não seja impaciente / com quem é impaciente com você / não seja malcriado / com quem é malcriado com você […] / não seja tão opaco / com quem não é transparente com você.”. Já em ‘Sou só’, dividida com sua parceira de longa data, Marisa Monte, deixa uma esperança no ar: “A vida vem de mim / transformo a noite em dia […] / para todos eu digo sim / eu sou a luz que guia.”
“Além do ‘Tribalistas’, Marisa já participou de vários discos meus, assim como eu também já colaborei em trabalhos dela. De certa forma, nossas vozes juntas já criaram uma identidade própria, as pessoas reconhecem. E, na canção ‘Sou Só’, sabia que precisava ser cantada por nós dois”, contou. Sobre a colaboração com Ana Frango Elétrico, ele destacou o entusiasmo: “Foi uma parceria muito legal, porque adoro os discos dela e sou fã do trabalho que ela faz. Achei que a participação ficou muito charmosa.”
Além das duas cantoras, o poeta paulista também fez dueto com o norte-americano David Byrne, fundador da banda Talking Heads, nas músicas ‘Body Corpo’ e ‘Não dá para ficar parado aí na porta’, ambas cantadas em inglês e português. As canções foram compostas à distância, por e-mail, em parceria com o violonista, que já colaborou com nomes como Marisa Monte e Tom Zé. “Eu já o admirava desde a época do Talking Heads, e continuei acompanhando sua carreira solo. Então, o convidei para criarmos algo juntos, mandei duas ideias e ele foi muito receptivo. Foi um encontro que fazia muito sentido acontecer, e aconteceu”, relembrou.
Já o rapper baiano Vandal, um dos pioneiros do grime e do drill no Brasil, escreveu o texto ‘MUNDANOH’ especialmente para o trecho instrumental da faixa de abertura, que dá nome ao disco. Além de complementar o coro entoado por Arnaldo, a interpretação do baiano, berrada e intensa, remete ao início da carreira do poeta nos Titãs, quase como se cuspisse as palavras. “PARAH PRAH ACERTARH/UH AVANÇOH DESSAH I•AH /VCH IAH TRABALHARH /ELLAH VAIH THE DEZARTAHRH”. “Acaba que o disco percorre vários tempos, reunindo artistas de diferentes gerações. Esses encontros, de certa forma, foram pensados, mas também aconteceram de maneira espontânea. Foi um trabalho mais orgânico”, disse.
‘Verbivocovisual’
Brincar com as palavras e os sons é algo intrínseco à trajetória solo de Arnaldo. Por isso, a linguagem ‘verbivocovisual’, conceito cunhado por James Joyce e incorporado pelos poetas concretistas, ocupa um lugar central na obra do artista. Nela, o poema deixa de ser apenas texto escrito e passa a ganhar dimensões sonoras, visuais e verbais, expandindo os limites da poética.“De certo modo, sou um herdeiro dessa tradição que renovou a poesia brasileira, ao provocar o atrito dela com outras linguagens. A própria ideia de fazer poesia e canção já expressa meu desejo de misturar códigos”, explica.
Arnaldo viveu intensamente o cenário efervescente da contracultura nos anos 1970. Além do rock, a Tropicália e as revistas de poesia, que reuniam colaborações de artistas visuais, músicos, poetas e letristas, contribuíram para formação estética e artística do ex-integrante dos Titãs. Anos mais tarde, a convivência com os poetas e integrantes do Noigandres – Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos – também ampliou o desejo de transitar em diferentes formatos de arte, como livros, performances, poesias e exposições. “Na década de 70, existia essa liberdade de trabalhar com diferentes ritmos e rolar um atrito entre os gêneros. Você pode fazer samba, rock, funk, baião e misturá-las. Também me sinto livre para contrabandear de uma área para outra ou, até mesmo, traduzi-las”, reitera.


Segundo Arnaldo, foi justamente movido pelo desejo de explorar novas linguagens que ele se tornou o primeiro integrante a deixar os Titãs, em 1992, para se dedicar à carreira solo. Afinal, eram oito cabeças decidindo o que entraria no repertório do grupo, e as músicas que ele vinha compondo já não encontravam mais espaço ali. Apesar disso, o “divórcio” não deixou mágoas profundas. Prova disso é que todos os integrantes da formação original – com exceção do guitarrista Marcelo Fromer, que morreu em 2001 – se reuniram recentemente em turnê para celebrar os 40 anos da banda.
“Foi quando eu saí que lancei ‘Nome’, um projeto que reuniu diferentes áreas da minha produção, como o vídeo, a linguagem visual e a poesia. Foi um trabalho mais experimental, que não tinha espaço dentro do consenso do grupo. De certa forma, é isso que venho desenvolvendo ao longo da minha carreira solo: transitando por diferentes formações instrumentais, explorando diversas regiões do meu canto e atravessando gêneros”, contou.
Ao longo de quatro décadas de trajetória artística, Arnaldo lançou mais de 20 livros, incluindo três títulos infantis, realizou 13 exposições de poemas visuais e apresentou cerca de 30 performances. Ainda assim, ele reconhece que é mais amplamente conhecido por seu trabalho na música popular, algo que atribui ao alcance da comunicação de massa. “Muita gente que me conhece pelas canções acaba se interessando também pela poesia ou pelos trabalhos visuais. Então, isso tudo, de certa forma, atrai um público que, a princípio, talvez não se aproximasse da minha poesia ou de outras artes. Acho que sou um autor de poesia muito privilegiado por conta da minha atuação na música”, disse.
‘Fazer show é o mais realizador’
Embora a poesia seja a plataforma a partir da qual o artista visual se aventura por outras linguagens, Arnaldo reitera uma afirmação feita há 25 anos, em entrevista ao Roda Viva: o que mais ama é fazer shows. “É claro que tenho muito prazer em criar e compor. Quando estou gravando um disco, é algo que me absorve inteiramente. Mas o prazer verdadeiro está no palco, é o mais realizador. Não tem nada que substitua isso — é onde descarrego minha energia e troco com o público. Ali baixa um Arnaldo diferente de qualquer outro e, talvez, seja esse o que mais me representa mesmo”, contou.
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O poeta retorna a BH após quase um ano, quando se uniu, de forma inédita, a Roberta de Sá em uma apresentação no Festival Novos Encontros, realizado no Parque Municipal. Para ele, encontrar o público mineiro é sempre motivo de alegria. “Sou muito bem recebido por Minas em geral. Tenho muitos amigos e parceiros aí, como o Chico Neves e a Júlia Branco. Além disso, minha esposa é mineira e, como a família dela vive no estado, estou sempre dando uma volta pelas cidades históricas. Sem contar a minha admiração pela música e pela poesia mineira”, ressalta.
Na apresentação da turnê ‘Novo Mundo’, além de dançar, Arnaldo incorpora uma produção visual assinada por Batman Zavareze, responsável pelos cenários, iluminação, lasers e efeitos especiais que dialogam com a composição gráfica do disco. O público ainda confere novos arranjos para clássicos que ecoam a crueza do rock como ‘O Pulso” e “Comida”, do repertório dos Titãs, além de sucessos da carreira solo, como ‘Casa é Sua’, ‘Socorro’, ‘Fora de Mim’ e ‘Já sei Namorar’.
Questionado sobre possíveis lançamentos futuros, o poeta reitera que a criação é constante, embora os projetos atuais ainda estejam em fase embrionária. De qualquer forma, seja nos livros, nas performances, nas artes visuais, no punk-rock dos Titãs, na poesia concreta ou na vibe mais hippie dos Tribalistas, o público sempre pode esperar alguma novidade do artista. Generalizar ou rotular sua trajetória seria redutor, afinal, Arnaldo é, acima de tudo, ‘inclassificável’.
Anota aí!
Turnê ‘Novo Mundo’, de Arnaldo Antunes
Data: 18 de julho, sexta-feira
Horário: a partir de 21h
Local: Sesc Palladium | R. Rio de Janeiro, 1046 – Centro, BH
Ingressos: a partir de R$ 120 | Sympla
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