Obrigada a abandonar carreira na juventude, cantora realiza sonho de lançar 1º disco aos 91 anos, com ajuda do neto: ‘Sonhos não envelhecem’


Avó realizada sonho de lançar 1º disco musical aos 91 anos com apoio da família
Já imaginou guardar um sonho por mais de 70 anos, esperando o dia em que ele pudesse finalmente ser realizado? Foi o que aconteceu com Maria Margarida Piedade Novaes. Aos 91 anos, a cantora lançou seu primeiro disco em julho deste ano, com o apoio dos filhos e a produção especial de um dos netos, que já venceu um Grammy Latino.
Para celebrar o Dia dos Avós, comemorado neste sábado (26), o g1 conta a história de Maria Piedade, nome artístico usado pela Vovó Margarida, como é chamada pela família.
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Cantora lança 1º disco musical aos 91 anos, com apoio da família
Família Novaes/Arquivo pessoal
Primeiro contato com o microfone
A artista nasceu em 1933, em Itapetininga (SP), mas hoje mora em Avaré, também no interior paulista. O primeiro contato com o microfone ocorreu ainda quando ela era jovem. Em 1954, Maria venceu o concurso de Rainha do IV Centenário da Rádio Nacional e chegou a se apresentar como cantora.
“A minha família era simples… Fiz três anos de magistério, quando pedi para o papai e a mamãe para eu ir para São Paulo para fazer conservatório de música. Eles permitiram que eu fosse e fui morar na casa de um tio. Lá, eu comecei a me interessar, a ver as rádios e aqueles concursos lá de cantoria. Abriu esse concurso na rádio nacional e eu tentei”, relembra.
Na época, aos 21 anos, Maria estudava no Conservatório de Canto Orfeônico, em São Paulo, e concorreu com outras 300 mulheres, que também tinham o sonho de ser locutoras de rádio. Mas a voz dela chamou a atenção dos jurados e foi escolhida como estrela, sendo sintonizada para todo o país ao lado de Hebe Camargo, Cauby Peixoto e Ângela Maria.
Cantora lança 1º disco musical aos 91 anos, com apoio da família
Família Novaes/Arquivo pessoal
Sonho interrompido
Só que o sonho precisou ser interrompido por decisão do pai. Maria era a única menina entre cinco irmãos homens e cresceu cercada por música: a mãe tocava sanfona, e o pai, tropeiro, era cantador. Mesmo assim, ela acatou a ordem de parar de cantar e, em seguida, casou-se com o então namorado, que cursava medicina no Rio de Janeiro.
O rapaz era Paulo Dias Novaes, figura importante e conhecida em Avaré, sua cidade natal. Ele se tornou vereador do município posteriormente. Na época em que eles namoravam, Maria ainda era cantora de rádio e Paulo chegou a romper o relacionamento com ela por carta. Durante esse processo, a jovem lidou com os sentimentos por meio da música.
Segundo a família, dois meses depois, chegou um telegrama do RJ. O texto dizia: “Estou acompanhando o seu sucesso pela rádio e queria saber se, por acaso, uma das músicas que você canta não tem os seguintes versos: ‘O arrependimento quando chega faz chorar'”, referência à clássica música “Arrependimento” (1935), de Silvio Caldas e Cristóvão Alencar.
A cantora, então, guardou o dom e seguiu o amor, mas afirma que não se arrepende da escolha que fez no passado: “De repente, ele retorna e pede para refazer o namoro e, com isso, eu achei que eu tinha que deixar de lado o canto para poder acompanhá-lo, né? Fiquei muito bem com ele.”
Cantora lança 1º disco musical aos 91 anos, com apoio da família
Família Novaes/Arquivo pessoal
Agora, olhando para o tempo vivido, Maria diz qual foi o maior sonho já realizado: “Realizei meu sonho de amor e fui constituir uma família, uma família querida, responsável. Tivemos os nossos filhos aí, todos seguiram o caminho certo, o caminho da fé, o caminho da responsabilidade… Então, acho que o sonho maior foi o casamento com o Paulo, e a vida que tive com ele e que deixou muita saudade.”
Após o casamento e o nascimento dos filhos, a vontade de lançar um disco ficou cada vez mais distante. Outros desejos se tornaram mais importantes, mas a música sempre esteve presente na vida de Maria.
Paulo morreu em 2007, aos 79 anos. Parte da família mora em Avaré até hoje, incluindo a própria matriarca. A união do casal, em 1957, trouxe novos sonhos a Maria a partir dos oito filhos, 21 netos e dez bisnetos (até o momento).
Frutos da musicalidade
“Todos os filhos estudaram piano, canto, e isso teve várias reverberações. Uma das minhas tias virou professora, que ensinou todos os sobrinhos, e foi onde eu comecei”, afirma Paulo Dias Novaes Neto, de 32 anos, ao relembrar que a avó Margarida depositou todo esse amor pela música em cima da família que construiu.
O neto, que tem o mesmo nome do avô, é músico, produtor musical e já venceu o Grammy Latino, por Melhor Canção em Língua Portuguesa, em 2021, pela composição de “Lisboa”, em parceria com Ana Caetano, na voz do duo Anavitória e de Lenine.
Ele foi o produtor do disco de Maria. “As pessoas, às vezes, não têm ideia do quão caro e trabalhoso é você fazer um disco. Tanto que ela não teve essa oportunidade em outros momentos, porque ela estava vivendo a vida dela, teve os filhos…”
Cantora lança 1º disco musical aos 91 anos, com apoio da família
Lucas Bordon/Divulgação
“Eu costumo dizer que esse é o projeto mais importante da minha vida e, dificilmente, vou fazer outro projeto mais importante que nem esse, porque não é apenas o disco, é uma coisa simbólica, é a história de uma mulher que não pôde seguir a carreira. Naquele tempo, era muito difícil uma mulher poder assumir essa questão de profissão.”
Paulo conta que a música sempre foi muito presente na família, desde sempre. “A geração do meu pai já foi de cabeça na música, né? Meu pai é compositor, outro tio é compositor, minha tia também, eles tinham uma banda entre irmãos, na década de 1980.”
Depois dos filhos, os netos também tiveram a oportunidade de trabalhar com a música e, de certa forma, realizaram o sonho que um dia foi o da avó. “A minha geração é a primeira que, oficialmente, trabalha com música. Eu e a Bruna Karam, principalmente. O Lucas Karam também, atualmente”, destaca Paulo.
Cantora lança 1º disco musical aos 91 anos, com apoio da família
Família Novaes/Arquivo pessoal
Mesmo após ter abandonado a carreira, Maria continuou cantando, mas para um público seleto: a família. “A música, assim, é a base da nossa relação. Chegava na casa da minha avó, corda de violão, minha avó cantando, todo mundo cantando infinitamente.”
“A família Novaes e a música têm uma relação quase de ter a música como um alimento mesmo. Eu digo que é o sonho dela, mas que é o sonho de toda a família também. Acho que todos nós somos frutos dessa musicalidade que ela trouxe”, afirma.
O neto relembra que a história da avó Margarida é semelhante às de outras tantas mulheres. “Da geração dela e de outras gerações. Se a gente vê a coisa do patriarcado, do machismo na música até hoje, imagina em 1954, que foi a época em que ela cantava…”
“Acho que o disco é uma coisa que tem uma importância muito grande pelo exemplo de que os sonhos não envelhecem… O mínimo que a gente pode fazer por ela é retribuir.”
Maria Piedade partilha momentos em família ao lado de filhos e netos em Avaré
A criação do disco
E foi o que aconteceu. A retribuição surgiu a partir da ideia de um dos filhos, Juca Novaes, entre 2018 e 2019. Depois, o projeto passou para o neto Paulo. “A escolha do repertório foi toda dela, em conjunto com o meu tio Juca”, conta.
As músicas contam uma história que, segundo o neto, é a dos avós. “Ela tem todas as cartas que trocava com ele. Então, tem a música que fala do carteiro. E, quando eles terminaram, ele ficou arrependido, aí tem a música do ‘Arrependimento’, a música do ‘Menino Grande’, que é como ela chamava ele. Quase todas as canções são as que ela cantava naquela época.”
O projeto teve uma pausa durante a produção, mas foi retomado em 2023 e 2024, após a pandemia da Covid-19. “Pensamos: ‘Vamos esperar até ter tudo pronto’. Mobilizamos toda a família e conseguimos, finalmente, lançar da melhor maneira possível.”
Ao todo, são nove faixas que compõem o disco, lançado em julho deste ano. As músicas também estão disponíveis nas plataformas digitais.
“Está todo mundo muito feliz [com o resultado]. Ela é a nossa grande inspiração, uma mulher que tem uma história irretocável de amor, de fé, de tudo, que teve toda essa resiliência de criar uma família, e você vê como a família é unida, isso é uma coisa muito rara e a gente é muito unido por conta dela”, afirma o neto.
Cantora lança 1º disco musical aos 91 anos, com apoio da família
Família Novaes/Arquivo pessoal
Realização de um sonho em família
Aos 91 anos, Maria Piedade não imaginava que o disco lançado faria tanto sucesso entre os amigos e conhecidos. “Fiquei até surpresa. E, com a repercussão, eu fiquei assustada que todo mundo ouviu e gostou. Então, disseram: ‘Pois é, a senhora demorou 70 anos para poder lançar o seu primeiro CD’. Eu falei: ‘Ainda é tempo…’. Bom, vamos ver, né?.”
“Fiquei feliz e preocupada, porque é uma responsabilidade grande. Esses dias, a Lucila ligou e ela falou: ‘De repente, a senhora vai ter que fazer um show aí em Avaré, o pessoal vai assistir’.”
A primeira reação de Maria Piedade foi de espanto, devido à idade e por usar apoio de bengala, mas, depois, começou a gostar da ideia. “São as músicas que eu estava acostumada a cantar, que o Paulo gostava. Todas elas falam um pouquinho da minha vida… O amor venceu a arte, é verdade.”
Cantora lança 1º disco musical aos 91 anos, com apoio da família
Família Novaes/Arquivo pessoal
Já Paulo Novaes Neto, ao refletir sobre o fato de a avó ter mais tempo do passado do que terá de futuro, descreve que: “Enquanto ela estiver bem, com saúde, a gente vai estar com ela. E, quando ela não estiver mais aqui fisicamente, a gente sabe que ela vai estar aqui nos acompanhando, iluminando o nosso caminho.”
“Não tem como apagar, agora a gente já está no mundo, finalmente, com um álbum à altura do tamanho dela, como artista, com a relevância da história dela, de tudo isso que ela representa para toda uma geração. O grande legado que eu carrego dela é essa paixão e respeito pela música.”
Cantora lança 1º disco musical aos 91 anos, com apoio da família
Lucas Bordon/Divulgação
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