Indígena que denunciou ter sido estuprada por PMs em delegacia no AM fala pela primeira vez: ‘Trauma para sempre’


Indígena vítima de estupros em delegacia no Amazonas relembra crimes e fala sobre traumas.
Patrick Marques/g1 AM
“O medo me persegue diariamente. Vivo um trauma que sempre vou carregar”. A frase é da indígena Kokama, de 29 anos, que falou pela primeira vez à imprensa após denunciar estupros cometidos por policiais militares e um guarda municipal enquanto esteve presa na delegacia de Santo Antônio do Içá, no interior do Amazonas.
A indígena deixou o presídio feminino de Manaus na terça-feira (29), quando passou a cumprir pena em regime semiaberto por um homicídio ocorrido em 2018. Em entrevista exclusiva ao g1 e à Rede Amazônica, ela relembrou os abusos sofridos entre novembro de 2022 e agosto de 2023, quando estava detida na delegacia.
📲 Participe do canal do g1 AM no WhatsApp
Quatro policiais militares e um guarda municipal foram presos desde que o caso veio à tona. Um quinto policial ainda está em operação em uma área remota e, segundo a Polícia Militar, será detido ao retornar.
Veja quem são os suspeitos e onde foram presos:
Tabatinga: Soldado Nestor Martin Ruiz Reátegui e Luiz Castro Rodrigues Júnior;
Manaus: 1º Sargento Osiel Freitas da Silva;
Santo Antônio do Içá: Cabo Claudemberg Lofie­go Cacau e o Guarda Municipal Maurício Faba Nunes.
“Hoje em dia eu vou ter que carregar o trauma para sempre na minha vida. Sinto medo das pessoas”, disse a vítima.
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM) e a Polícia Civil informaram que foi instaurado um procedimento para apurar o caso. Já a Polícia Militar afirmou que abriu um inquérito policial militar, atualmente em fase final de investigação.
Prisão e abusos
A prisão ocorreu em 11 de novembro de 2022, após uma vizinha acionar a Polícia Militar por suspeita de violência doméstica entre a indígena e o companheiro.
Na delegacia de Santo Antônio do Içá, os policiais descobriram que havia um mandado de prisão em aberto contra ela, referente a uma condenação por envolvimento em um homicídio ocorrido em Manaus, em 2018.
No processo ao qual a Rede Amazônica teve acesso, a indígena foi colocada em uma cela com presos homens devido à falta de cela feminina. Foi nesse ambiente que começaram os abusos praticados pelos agentes de segurança pública. Os detentos que dividiam a cela com ela não participaram dos estupros.
“Diante disso, eles me colocaram em uma cela com homens, junto com meu filho, que tinha apenas 21 dias de vida. Fiquei presa lá por nove meses. Durante esse período, comecei a sofrer abusos sexuais por parte de policiais e guardas municipais. Não tive audiência de custódia. Disseram que haviam notificado a comarca de Manaus sobre minha prisão, mas, naquele momento, eu, minha mãe e minha família não sabíamos o que fazer”, lembrou a indígena.
Ela relatou ainda que os abusos começaram já na primeira noite na delegacia. Segundo a indígena, um dos sargentos denunciados entrou na cela e cometeu o crime enquanto ela estava com o filho ao lado.
“Eu tinha acabado de amamentar. Ele abriu a porta da cela, estava bêbado, se aproximou de mim e disse que eu estava sob sua guarda e que tinha que colaborar com ele. Ele me deitou ao seu lado, perto de onde meu filho estava. Os outros presos não disseram nada, pois tinham medo de serem espancados, como sempre acontecia na delegacia de Santo Antônio do Içá”, contou.
Indígena denuncia estupros em delegacia no interior do Amazonas
Divulgação
LEIA TAMBÉM:
Indígena estuprada em delegacia no Amazonas receberá auxílio social e moradia após acordo com Estado, diz defensoria
Justiça determina que indígena estuprada em delegacia cumpra pena em semiliberdade no AM
Nos dias seguintes, a indígena revelou que chegou a cogitar o suicídio por não saber como escapar dos abusos e pelo medo do que os policiais poderiam fazer.
“Eu queria acabar com a minha vida a qualquer momento, a qualquer custo. Sabia que, quando chegassem os finais de semana, à noite, teria que passar pela mesma situação e depois acordar e fingir que nada estava acontecendo naquele lugar. Não contei para ninguém porque tinha muito medo, principalmente pela minha família que estava lá. Meu único refúgio era minha mãe. Naquele momento, eu não tinha nenhum suporte”, afirmou.
Ela permaneceu com o filho na cela por dois meses, até que o bebê contraiu uma gripe e foi levado para os cuidados da mãe da indígena.
Juiz recusa ajuda
Questionada se alguma autoridade presenciou a situação dela, dividindo cela com homens e com o filho recém-nascido, a indígena contou que um juiz visitou a delegacia de Santo Antônio do Içá, mas afirmou que não poderia ajudá-la, pois ela respondia a um processo da comarca de Manaus.
“Teve um juiz que fez uma visita lá. Ele estava fazendo tipo um mutirão com os presos das comarcas da região. Os presos disseram para mim, eu pedi permissão para falar com ele, e ele disse que não poderia fazer nada por mim. Que eu não era presa dele, da comarca dali. Eu era presa da Justiça de Manaus. Foram essas palavras. É revoltante tudo que aconteceu comigo naquele local. Eu ter ficado ali esquecida, exposta a tudo que passei durante nove meses”, relatou.
Por meio de nota, a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Amazonas informou que determinou a instauração de um procedimento correcional para apuração da situação e verificação de eventual responsabilidade disciplinar de magistrados e servidores envolvidos na situação.
Indígena denuncia múltiplos estupros em delegacia no interior do AM
Medos, traumas e planos para o futuro
Após nove meses de prisão e abusos, a indígena enfrenta medos e traumas. Ela está em tratamento psicológico e psiquiátrico.
“Tenho síndrome do pânico, penso que as pessoas vão me fazer mal, sonho, às vezes tenho algumas ilusões que não são comuns para um ser humano. Muitas vezes fiquei assim, mas fui acompanhada por psicóloga e psiquiatra para poder ter controle e realizar atividades dentro do presídio”, lembrou.
Ela diz ainda que estar presa por um crime não é salvo-conduto para ser abusada por policiais.
“Sei que estava respondendo pelo crime, estou respondendo pelo crime que cometi, mas isso não dava direito para tudo que aconteceu comigo daquela forma. Eu estava sob a guarda deles, e o dever deles era cuidar e proteger. Eles fizeram exatamente o contrário”, contou.
Ao ser transferida para o regime semiaberto, ela disse estar aliviada por deixar o local onde sofreu os abusos e quer começar uma nova vida.
“Hoje me sinto muito satisfeita de estar livre daquele lugar. Nem tenho palavras para descrever a sensação que estou sentindo. Parece que nem acredito ainda que estou fora daquele presídio. Quero respirar e sentir essa liberdade, encontrar meus filhos, minha família. Por enquanto é isso”.
Tenho que sentar, pensar e colocar em prática o que quero daqui para frente: ter uma vida estabilizada, trabalhar e tentar reverter todo esse quadro na minha vida”, afirmou.
Defensoria pediu prisão domiciliar em 2022 para indígena que acusa policiais de estupro em delegacia do AM
Defesa de indígena diz que ela foi tratada como ‘escrava sexual’ de policiais em prisão no AM
O que se sabe e o que falta esclarecer sobre a indígena que denunciou estupros de policiais em delegacia no AM
Suspeitos presos
Os abusos sexuais só foram denunciados em 27 de agosto de 2023, quando a indígena foi transferida para a Unidade Prisional Feminina de Manaus.
A Polícia Militar informou que abriu processos internos para apurar o caso. Três policiais e o guarda foram presos no último sábado (26) e um quarto policial foi preso no dia seguinte, após a repercussão do caso no Jornal Nacional.
Os suspeitos são investigados por estupro de vulnerável, estupro qualificado e tortura.
Um dos suspeitos de estuprar a indígena que foi preso em Santo Antônio do Iça
Divulgação
Adicionar aos favoritos o Link permanente.