Paredões deixaram de ser apenas festas de rua para se tornarem instrumentos de poder
| Foto: Reprodução / UFRB
Do Rio Vermelho às vielas dominadas pelo tráficoNos primeiros anos, essas festas se concentravam em áreas neutras da cidade, como o antigo Mercado do Peixe, no Rio Vermelho, ou no Jardim dos Namorados, e eram chamadas de ‘calouradas’, fazendo referência ao termo usado para alunos novos, principalmente em faculdades. Mas isso mudou, principalmente devido o avanço do domínio territorial por facções criminosas, os paredões migraram para dentro das comunidades, locais de difícil acesso das forças de segurança pública.Com isso, as festas ganharam força e passaram a operar como demonstração explícita de poder. “É criar aquele sentimento de pertencimento, de engajamento com os adolescentes, que ali são os alvos mais sensíveis, mais frágeis”, reforça o delegado.”Esqueça flertar”Apesar das músicas com forte apelo sexual, os paredões não são lugares propícios para paquera. A lógica é outra: a da vigilância, do medo e do território. Um jovem de 25 anos, que conversou com a reportagem sob anonimato, relatou o receio de interações com mulheres nas festas. “A gente não pode nem encarar, pode ser mulher de alguém, no máximo olhamos e disfarçamos, jamais chamar atenção.”
Baixinha de São Gonçalo
| Foto: Reprodução / Redes Sociais
Perguntado se era possível flertar em um paredão, foi direto: “Nunca! Esqueça flertar, conversar ou tentar relacionar com qualquer mulher nessas festas, a menos que já seja uma pessoa que você conheça, do seu convívio. Caia fora, se não pode custar ir para as ‘ideias’” , termo usado para o interrogatório informal realizado por facções criminosas.Regras, ostentação e medoO cenário é marcado por jovens, em sua maioria negros e de classe baixa, roupas de marca, motos com escapamento adulterado e bebidas como uísque com energético e a “verdinha”, apelido dado à cerveja Heineken, símbolo de ostentação entre os frequentadores. Mas a festa tem códigos rígidos impostos pelo crime: quem fura as regras pode sofrer represálias graves.
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As músicas que tocam nos paredões, conhecidas como “proibidões” também reforçam a cultura da violência e da sexualização. Algumas letras citadas nos eventos escancaram o teor:Rei dos Faixas: “Vou dar para o bandido porque ele me f*de bem, me f*de e faz de refém.”Bloquinho Cínico 3.0: “Bota a xerequinha para suar.”Yuri na Voz: “Senta, sua filha da p*ta!”Oh Playba: “Hoje é revoada, é putaria maluca, vou sequestrar várias tchucas e ninguém é de ninguém. Hoje tem live com refém.”Essa última faz referência direta a situações reais em que criminosos invadem residências e transmitem ao vivo suas ações, acionando familiares e imprensa.Terreno fértil para o crimeOs paredões se tornaram uma das estratégias mais eficazes para movimentação do tráfico de drogas, recrutamento de jovens e demonstração de controle sobre o território. “É a cultura do crime sendo enraizada”, afirma Figueiredo.
O impacto é visível: corrupção de menores, exploração sexual, tráfico de entorpecentes e homicídios já fazem parte da rotina de denúncias associadas a esses eventos. Casos recentes reforçam a gravidade do problema:14 de julho de 2025: o delegado Jean Fiúza foi baleado durante operação na Engomadeira, quando homens armados reagiram à presença policial em um paredão.29 de junho: duas pessoas foram mortas e outras sete ficaram feridas durante um tiroteio em uma festa do tipo no Alto do Cabrito.9 de junho: dois homens foram assassinados após discussão em um paredão na cidade de Valença.1 de maio: dois adolescentes foram baleados em um evento na Praça do Capelão, em Lauro de Freitas.A repressão e os limites da leiApesar dos esforços, as autoridades enfrentam barreiras operacionais e políticas para conter os eventos. A Lei Municipal 5.354/98 estabelece o limite de 70 decibéis de ruído durante o dia e 60 decibéis à noite. Multas por infração sonora podem chegar a R$ 201 mil.
Crescimento dos paredões gerou debates acalorados
| Foto: DIvulgação / Polícia Militar
Entre janeiro e abril de 2025, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur) registrou 7.714 denúncias de poluição sonora. Só na Operação Silere, 198 equipamentos sonoros foram apreendidos — muitos deles em paredões. As denúncias podem ser feitas pelo número 156 ou pelo aplicativo Sonora Salvador.Mesmo com as medidas, o poder público reconhece que a ação precisa ser feita com cautela. “Ali tem cidadão de bem, tem menores, idosos… a gente não pode simplesmente chegar acabando com tudo”, pondera o delegado Figueiredo.Entre cultura e criminalizaçãoO crescimento dos paredões gerou debates acalorados. Em 2021, após a morte de seis pessoas durante uma festa no bairro do Uruguai, o então governador Rui Costa anunciou a proibição desses eventos em todo o estado. A decisão dividiu opiniões: parte da população apoiou a medida; outros viram como tentativa de criminalizar manifestações culturais da juventude negra e periférica.