Festa, facção e pagode: o que acontece por trás dos paredões de Salvador

Os paredões de som se tornaram a trilha sonora dos fins de semana em diversas comunidades de Salvador e da região metropolitana. Potentes caixas de som instaladas em carros, semelhantes a trios elétricos, invadem ruas estreitas com batidas ensurdecedoras, embalando centenas de jovens que dançam, bebem e se reúnem até o amanhecer. A cena, apesar do clima festivo, esconde uma realidade complexa e muitas vezes violenta.De acordo com especialistas e com a própria polícia, os paredões deixaram de ser apenas festas de rua para se tornarem instrumentos de poder das facções criminosas. “Por trás dessas festas, além do tráfico de drogas, há outras práticas delituosas”, afirma o delegado-geral de operações da Polícia Civil, Jorge Figueiredo.“As facções acabam promovendo esses eventos, buscando criar um ambiente favorável para recrutamento, criando um falso sentimento de pertencimento, estimulando o engajamento e utilizando esse ambiente também para fazer uma demonstração clara de domínio territorial”, disse.

Paredões deixaram de ser apenas festas de rua para se tornarem instrumentos de poder

|  Foto: Reprodução / UFRB

Do Rio Vermelho às vielas dominadas pelo tráficoNos primeiros anos, essas festas se concentravam em áreas neutras da cidade, como o antigo Mercado do Peixe, no Rio Vermelho, ou no Jardim dos Namorados, e eram chamadas de ‘calouradas’, fazendo referência ao termo usado para alunos novos, principalmente em faculdades. Mas isso mudou, principalmente devido o avanço do domínio territorial por facções criminosas, os paredões migraram para dentro das comunidades, locais de difícil acesso das forças de segurança pública.Com isso, as festas ganharam força e passaram a operar como demonstração explícita de poder. “É criar aquele sentimento de pertencimento, de engajamento com os adolescentes, que ali são os alvos mais sensíveis, mais frágeis”, reforça o delegado.”Esqueça flertar”Apesar das músicas com forte apelo sexual, os paredões não são lugares propícios para paquera. A lógica é outra: a da vigilância, do medo e do território. Um jovem de 25 anos, que conversou com a reportagem sob anonimato, relatou o receio de interações com mulheres nas festas. “A gente não pode nem encarar, pode ser mulher de alguém, no máximo olhamos e disfarçamos, jamais chamar atenção.”

Baixinha de São Gonçalo

|  Foto: Reprodução / Redes Sociais

Perguntado se era possível flertar em um paredão, foi direto: “Nunca! Esqueça flertar, conversar ou tentar relacionar com qualquer mulher nessas festas, a menos que já seja uma pessoa que você conheça, do seu convívio. Caia fora, se não pode custar ir para as ‘ideias’” , termo usado para o interrogatório informal realizado por facções criminosas.Regras, ostentação e medoO cenário é marcado por jovens, em sua maioria negros e de classe baixa, roupas de marca, motos com escapamento adulterado e bebidas como uísque com energético e a “verdinha”, apelido dado à cerveja Heineken, símbolo de ostentação entre os frequentadores. Mas a festa tem códigos rígidos impostos pelo crime: quem fura as regras pode sofrer represálias graves.

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As músicas que tocam nos paredões, conhecidas como “proibidões” também reforçam a cultura da violência e da sexualização. Algumas letras citadas nos eventos escancaram o teor:Rei dos Faixas: “Vou dar para o bandido porque ele me f*de bem, me f*de e faz de refém.”Bloquinho Cínico 3.0: “Bota a xerequinha para suar.”Yuri na Voz: “Senta, sua filha da p*ta!”Oh Playba: “Hoje é revoada, é putaria maluca, vou sequestrar várias tchucas e ninguém é de ninguém. Hoje tem live com refém.”Essa última faz referência direta a situações reais em que criminosos invadem residências e transmitem ao vivo suas ações, acionando familiares e imprensa.Terreno fértil para o crimeOs paredões se tornaram uma das estratégias mais eficazes para movimentação do tráfico de drogas, recrutamento de jovens e demonstração de controle sobre o território. “É a cultura do crime sendo enraizada”, afirma Figueiredo.

O impacto é visível: corrupção de menores, exploração sexual, tráfico de entorpecentes e homicídios já fazem parte da rotina de denúncias associadas a esses eventos. Casos recentes reforçam a gravidade do problema:14 de julho de 2025: o delegado Jean Fiúza foi baleado durante operação na Engomadeira, quando homens armados reagiram à presença policial em um paredão.29 de junho: duas pessoas foram mortas e outras sete ficaram feridas durante um tiroteio em uma festa do tipo no Alto do Cabrito.9 de junho: dois homens foram assassinados após discussão em um paredão na cidade de Valença.1 de maio: dois adolescentes foram baleados em um evento na Praça do Capelão, em Lauro de Freitas.A repressão e os limites da leiApesar dos esforços, as autoridades enfrentam barreiras operacionais e políticas para conter os eventos. A Lei Municipal 5.354/98 estabelece o limite de 70 decibéis de ruído durante o dia e 60 decibéis à noite. Multas por infração sonora podem chegar a R$ 201 mil.

Crescimento dos paredões gerou debates acalorados

|  Foto: DIvulgação / Polícia Militar

Entre janeiro e abril de 2025, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur) registrou 7.714 denúncias de poluição sonora. Só na Operação Silere, 198 equipamentos sonoros foram apreendidos — muitos deles em paredões. As denúncias podem ser feitas pelo número 156 ou pelo aplicativo Sonora Salvador.Mesmo com as medidas, o poder público reconhece que a ação precisa ser feita com cautela. “Ali tem cidadão de bem, tem menores, idosos… a gente não pode simplesmente chegar acabando com tudo”, pondera o delegado Figueiredo.Entre cultura e criminalizaçãoO crescimento dos paredões gerou debates acalorados. Em 2021, após a morte de seis pessoas durante uma festa no bairro do Uruguai, o então governador Rui Costa anunciou a proibição desses eventos em todo o estado. A decisão dividiu opiniões: parte da população apoiou a medida; outros viram como tentativa de criminalizar manifestações culturais da juventude negra e periférica.

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