O legado do arquiteto Alfredo Camarate, um notável erudito nos primórdios de BH

Belo Horizonte teve o privilégio de contar com um intelectual de grande envergadura para narrar o nascimento da nova capital, registrar a vida do antigo Arraial do Curral del Rei – que caminhava para o desaparecimento –, e ainda contribuir para a construção de edificações e na formação dos campos literário e musical. Trata-se do arquiteto, construtor, músico e jornalista Alfredo Camarate.

Nascido em Lisboa, Portugal, em 1840, o ilustre profissional estudou no seu país e na Inglaterra, percorreu vários países da Europa e transferiu-se para o Rio de Janeiro por volta de 1872. Em 1894, vindo de Ouro Preto-MG – onde escrevia no jornal Minas Gerais, órgão oficial de imprensa – radicou-se em Belo Horizonte para dedicar-se aos trabalhos da Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC), bem como às suas atividades de jornalista, ativista cultural e empreendedor.

Como jornalista, Camarate escreveu inúmeras crônicas nos jornais Minas Gerais, O Contemporâneo, Bello Horizonte e A Capital, nas quais abordou os costumes, a paisagem, o clima, os eventos artísticos, as construções e outros temas da vida cotidiana do antigo arraial e da nascente Belo Horizonte. Nesse contexto, cabe destacar que, além de figurar como o primeiro cronista, coube ao arquiteto lisboeta fundar a cultura arquitetônica na capital mineira, em sua vertente escrita, deixando-nos valiosas publicações sobre arquitetura, antes mesmo da fundação da cidade.

Edição de março de 1894 do jornal ‘Minas Gerais’ com a primeira crônica de Camarate na coluna ‘Por Montes e Vales.’ (Crédito: Acervo da Biblioteca Nacional).

Este prodigioso feito deu-se, sobretudo, no jornal Minas Gerais, no qual Camarate, sob o pseudônimo de Alfredo Riancho, redigiu, ao longo de 1894, a coluna intitulada Por Montes e Vales, produzindo os primeiros textos da cidade a tratar especificamente de arquitetura. Em seu teor, podemos afirmar que esses escritos – mesmo considerando os parâmetros atuais de conhecimento – transitaram entre os gêneros da crítica e da teoria da arquitetura, sendo, na maioria das vezes, mais voltados à crítica.

Na sua coluna do Minas Gerais, Camarate abordou a arquitetura dos templos do antigo Arraial do Curral del Rei – que logo seriam demolidos para a construção da nova capital –, os novos projetos das estações ferroviárias e da igreja matriz, a estética do estilo eclético, a formação e a trajetória profissional do arquiteto José de Magalhães e a própria definição do que seria a arquitetura, como na passagem a seguir, em texto datado de agosto de 1894:

Diz-se que a arquitetura é a expressão material das necessidades, das faculdades e dos sentimentos do tempo em que ela se manifesta, e que o estilo é a forma particular que toma a expressão, sob a influência do clima, e dos costumes, dos materiais de que se dispõe e do estado das ciências que se aplicam.

Nesse contexto, se o pernambucano José de Magalhães é considerado o primeiro arquiteto de Belo Horizonte – por ter sido chefe da seção de arquitetura da CCNC – também podemos atribuir tal primazia ao lisboeta Alfredo Camarate. Sendo o primeiro dedicado a projetos e o segundo fundamentalmente à escrita, a capital mineira beneficiou-se da presença de um prático e de um pensador como fundadores do campo da arquitetura.

A antiga Matriz da Boa Viagem, no Arraial de Belo Horizonte (antigo Curral del Rei), foi objeto de crítica arquitetônica publicada por Alfredo Camarate em sua coluna no ‘Minas Gerais’ de 28 de março de 1894. (Crédito: Acervo da CCNC).

A atuação de Alfredo Camarate na conformação material e intelectual de Belo Horizonte em seus primórdios o qualificou para exercer outra atividade profissional pioneira na cidade: a de analista de projetos. Sua vasta erudição e seus conhecimentos no campo da arquitetura lhe permitiram, no âmbito da CCNC, tornar-se responsável pela aprovação dos projetos para as construções particulares na cidade. Segundo o historiador Abílio Barreto, nas análises de Camarate:

Nenhum projeto era aprovado sem o seu próprio julgamento […], fosse declarando em boas condições a planta ou fosse propondo modificações.

A antiga Estação Ferroviária General Carneiro (demolida), foi projetada por José de Magalhães e construída pela firma Edwards, Camarate & Soucasaux. (Crédito: Laboratório de Fotodocumentação Sylvio de Vasconcellos / UFMG).

No alvorecer da cidade, Camarate também participou da construção de edifícios e do fornecimento de materiais construtivos para a administração pública. Na condição de sócio da empresa Edwards, Camarate e Soucasaux, foi responsável, entre outras, pela construção de parte da ponte David Campista e da Estação Ferroviária General Carneiro (demolida), obra de suma importância para a melhoria das condições de chegada de materiais de construção e de pessoas à capital. Junto à estação, a firma de Camarate deu início à primeira obra da cidade, a casa do agente da estação – realização destacada pelos próprios construtores em comunicado ao engenheiro-chefe da CCNC, Aarão Reis:

[…] no dia 10 de novembro de 1894, foi lançada a primeira pedra nos alicerces de casa da residência erguida junto à mesma estação. Cabe, portanto, à modesta firma Edwards, Camarate & Soucasaux a glória de haver construído o primeiro alicerce da futura capital do Estado de Minas, confiada ao zelo e competência do Dr. Aarão Reis.

No campo da cultura artística, como flautista e compositor de peças para piano, cabe destacar que, em julho de 1896, ainda no ambiente do antigo arraial, o ilustre lisboeta foi responsável pela fundação da Sociedade Musical Carlos Gomes, uma das primeiras bandas musicais de Belo Horizonte, que ainda enriquece a vida cultural da cidade com apresentações em sua tradicional sede no Bairro Calafate e em outras paragens, sendo a mais antiga em funcionamento.

Ao criar a banda musical que entraria para a história da capital mineira, tendo na antiga Rua do Capão uma das suas primeiras sedes, Camarate uniu as culturas erudita e popular. Se por um lado o nome da sua agremiação foi uma homenagem ao ilustre maestro e compositor Carlos Gomes, autor de óperas como O Guarani; por outro, os seus primeiros músicos foram arregimentados junto aos operários que trabalhavam na construção da cidade.

A antiga Rua do Capão, no Arraial de Belo Horizonte (antigo Curral del Rei), abrigou uma das primeiras sedes da Sociedade Musical Carlos Gomes, criada em 1896 por Alfredo Camarate (Crédito: Acervo da CCNC).

Na apresentação de estreia da banda Carlos Gomes, em setembro de 1896, numa missa celebrada na antiga Capela do Rosário, Camarate conduziu a execução de peças de sua autoria, bem como composições do próprio Carlos Gomes e do célebre maestro e compositor alemão Richard Wagner, sendo essa ocasião, nas palavras de Abílio Barreto, a primeira vez que a cidade ouviu em público obras desses mestres da música erudita.

Neste raro registro da Sociedade Musical Carlos Gomes, Camarate é o senhor de terno e cartola no centro da fotografia, ao lado da criança. (Crédito: Acervo José Goes).

Em 1904, aos 64 anos de idade, o erudito arquiteto lisboeta faleceu na cidade de São Paulo, onde, desde 1899, trabalhava na fiscalização urbana municipal e no jornal Correio Paulistano.

Décadas depois, Camarate voltou a ganhar destaque na paisagem urbana de Belo Horizonte. Como homenagem ao seu legado, a cidade passou a designar com seu nome uma avenida na região da Pampulha – a via que dá acesso ao Centro de Treinamento Esportivo da UFMG, nas proximidades do Estádio Mineirão. Tal gesto marcou o reconhecimento da sociedade belo-horizontina pelas importantes contribuições desse arquiteto para a cidade. A criação do topônimo “Avenida Alfredo Camarate” foi, portanto, uma maneira de preservar a memória desse prestigioso personagem, que participou ativamente da história intelectual e material dos primórdios da capital mineira.

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