No sertão baiano, onde no mês de agosto fica um friozinho mentiroso e o tempo é ameno, mas não dá para confiar no seu andamento e no plantio, muito menos nos açudes, havia uma cidade que até pouco tempo atrás vivia num sossego de dar modorra. Nem pense que a ordem social vinha do poder do delegado, nem do prefeito, muito menos do juiz, isso quando ele aparecia só para levar galinhas e porcos dados, que crime não havia.Quem mandava, mandava mesmo de fazer menino chorar só de encarar, mulher se urinar só de apontar e homem macho se amofinar quando em sua direção pisando forte, era o velho Ésquilo, padre da paróquia. Uma peça franzina, pele de couro de calango rajado do sol, já na casa dos quase cem anos, franzino que nem caule de capim, mas com um olhar que, diziam, atravessava a alma e pesava, media o pecado de cada um.O segredo dele não estava na batina surrada, nem nos sermões cheios de latim que ninguém entendia, que parecia coisa inventada da sua cabeça. As fuxiqueiras diziam que o latim era, na verdade, os eflúvios do vinho que tomava escondido, santo do pau oco, mas ninguém provava nada, ninguém sequer o vira virar uma garrafa ou soltar bafo de álcool. Quem o defendia dizia na cara das futriqueiras que elas estavam destinadas a sentar no colo de Belzebu. Pecado contra o pobre homem santo de Deus.O segredo de tanta ordem na cidadezinha, onde ninguém queria ir e os de lá não saíam com medo de ocorrências, era como a que aconteceu com Germano da bodega que se retou, vendeu o negócio, recolheu o que tinha e foi embora falando mal do padre. Não chegou nem no Quijingue e foi devorado por um tigre. De onde apareceu esse tal de tigre que nem daqui é, nem pergunte. Teve também o fato acontecido com Gazinel e suas filhas mabaças, quando ele deu uma banana para o padre que puxara sua orelha em plena rua e o fizera passar vergonha ao acusá-lo de usar as meninas. Fechou a casa, pegou as filhas e se foi e nem deu para chegar no povoado do Poço do Dantas. Abriu-se uma cratera no caminho que engoliu todo mundo e só ficou o jegue Meleca para contar a história, bichinho sem pecado e até castrado.O segredo da vida mansa da cidade era um artefato não identificado. Uns diziam que era uma luz vermelha, outros que era um dedo de cobre, ou seria uma cobra de olhos de fogo escondida atrás do altar: o Detector de Capetas. Uma geringonça que, segundo o povo, identificava pecadores na hora. Bastava o sujeito botar o pé na igreja e dar dois passos em direção ao altar que, se tivesse pecado dos grandes – como roubar, matar, bater na mãe, expulsar pai de casa, usar as irmãs e primas ou primos, ou bater nos bichinhos de Deus e até manter passarinho preso na gaiola –, se tivesse o demônio no corpo, o sensor apitava, soltava uma luz vermelha e todo mundo sabia que acabara de entrar um pecador. Tinha muito a esconder e aí virava pária, todos olhando de lado, sem bom dia, boa tarde, boa noite, como vai, como vão todos. E esse capeta que fosse pedir uma xícara de açúcar ou uma cuia de farinha emprestada ao vizinho era enxotado que nem gambá-sariguê fedorento.Mas o pior, diziam, é que quando o pecador tivesse tanto pecado que não caberia numa carroça, corria a lenda de que quem fosse pego nesse estágio já virava pó e tinha a alma despachada ali mesmo, de dentro da igreja, como se fosse do guichê dos Correios, direto para o inferno, sem direito a reza nem vela. Só o choro dos parentes ou, como foi o caso do barbeiro Armando Nascimento, da choradeira das seis mulheres bonitas que ele tinha – umas bojudas, tetudas de dar gosto, uma em cada povoado. Ficaram dias na escadaria da igreja gritando e chorando, até que, desesperadas de amor e saudade, duas delas decidiram entrar na igreja e seguiram o mesmo caminho do que virou pó. As outras se calaram e deram no pé. Sumiram entre as palmas, melissas e cansanções.Mas era por causa disso, do Detector de Capetas, que as missas viviam quase vazias. E quando aparecia alguém, todo mundo desconfiava: se veio, é porque tá limpo… ou muito desesperado. Quando o padre morreu, só acharam pedaço da batina surrada na sacristia e nada do corpo, parecendo que fora comido por bicho ou levado por sucuri, a cidade se transformou. Era como se o portão do inferno tivesse aberto bem no meio da praça. Eram festas indecentes, troca de casais, irmão de braço dado com irmã, o prefeito assumindo três amásias que eram da tribo local, o delegado virando dono da casa de tolerância, importando mulheres do Paraguai, Venezuela e Argentina e se apresentando num palco fantasiado de Valquíria. Um pastor evangélico apareceu do nada com a Bíblia empunhada.O chinês da mercearia e lanchonete, antes visto como homem sério, foi flagrado num dia de azar: uma cabeça de cachorro boiando dentro de uma panela de sopa. Descobriram que era hábito ele usar carne de vira-lata no yakissoba. Até leilão de mulheres começou, e teve marido apostando esposa em corrida de rato, coisa que passou a ser comum.Tudo estava correndo no mais perfeito caos até que veio a notícia: um padre novo estava a caminho. O comentário no mercado, na bodega, no prostíbulo, era um só:— Será que ele vai usar o Detector de Capetas?O medo voltou a percorrer as veias da cidade. Muita gente pensou em esconder pecado debaixo do colchão, outros em viajar por uns meses. Mas todos queriam ver o tal padre novo. E foi numa noite de nuvens pesadas que não despencavam nem faziam chover, num vento de bafo, que ele chegou. O vento uivava nas esquinas, o céu parecia engolir a lua escurecida. Quando o trator que o trazia dobrou a rua principal, um trovão sacudiu as janelas. A multidão estava aglomerada em frente à igreja, esperando, e se tremeu de susto. Trovão daquele só no dia em que caiu uma chuvarada que levou tudo embora, com corpos aparecendo até no povoado do Poço do Zezé, que é longe.O padre desceu, ajeitou a batina engomada, sem uma prega apesar da viagem, o cabelo bem cortado e penteado como se usasse laquê, os sapatos brilhando no escuro, um crucifixo de ouro com pedras brilhantes e corrente grossa no pescoço, descendo quase até o umbigo. Segurou a mala bonita e elegante que ninguém nunca vira igual por aquelas barrancas, muito mais bonita que a de tecido amarelo e prata trazida por seo Gentil Mecânico, quando esteve uma semana na capital da Bahia para conhecer, e voltara diferente com o ombro levantado e nariz empinado. Uma moça falou:— Homem bonito, valha-me Deus.E bateu com a mão na boca para revisar o pecado de admirar emissário do Senhor, seu representante na Terra. Ele ouviu e deu um disfarçado sorriso e uma olhada também com desfaçatez para ver quem era.Ao pisar na escadaria, um relâmpago cortou o céu, tão forte que por um instante tudo ficou branco. Um estrondo sacudiu o chão. O padre acelerou o passo e entrou na igreja deixando a multidão lá fora na chuva que começou a cair, chuva caindo depois de anos sem que caísse chuva. O padre abriu a porta, mas não teve tempo de ver a felicidade do povo se molhando e bebendo pingos de chuva. Deu outro trovão, de uma claridade que quase cega quem olhava para o céu, e se ouviu o barulho e a luz do Detector de Capetas. A chuva como veio passou e quando a visão geral voltou o padre, o padre, o padre não estava mais lá.A bem da verdade, nem padre, nem mala, nem igreja. Nada. Apenas o som do vento ainda com sopro quente e o cheiro de terra molhada. A multidão ficou muda. Alguns juraram que viram uma sombra sendo sugada para dentro da igreja antes do clarão. Outros disseram que um raio caiu exatamente no campanário. O povo foi chegando mais perto… e gelou. No lugar, só o chão batido e um círculo de terra preta num formato de chifre de guzerá.Uns diziam: — Tinha muito pecado!Outros: — Nunca vi igual!A moça: — Era tão bonito!Alguns: — Tinha pecado nenhum, podia se ver pelo porte. Foi o trovão, o relâmpago!Ninguém falou mais nada. Cada um voltou pra sua casa, devagar, fechando portas e janelas. Dia seguinte, sol rasgando o céu azul sem nuvens e as folhas sem balançar ou passarinho piar, a cidade acordou como se nada tivesse acontecido. Os da cidade, capetas ou não, voltando aos seus afazeres: o prefeito com suas amásias desfilando vaidade pelo comércio; o delegado, vestido de organza fina harmonizada com filetes de prata e enlaçados com fitas rigô de cetim, com suas importadas marafonas; o chinês reformando a mercearia-lanchonete.Alguém, passando pelo terreno vazio, soltou:— Dá pra fazer um forró dos bons aqui…Ninguém discordou.*Escritor e jornalista. Autor, dentre outras obras, de “A Engenharia e a História da Bahia”.
O Detector de Capetas
Adicionar aos favoritos o Link permanente.