A descentralização dos recursos culturais na Bahia tem provocado debates acalorados entre artistas e produtores. Em entrevista exclusiva ao A TARDE, o secretário estadual da Cultura, Bruno Monteiro, comenta o manifesto assinado por cerca de 100 artistas com críticas à sua gestão. Para ele, “a crítica velada é a territorialização, a democratização e o reconhecimento mais amplo dos fazeres culturais”.Ele também falou sobre o preconceito que afirma ter enfrentado desde sua nomeação. “Esse preconceito xenofóbico que sofro desde o momento em que fui anunciado secretário já cansou”, disse Monteiro, acrescentando que muitas das críticas estão ligadas ao direcionamento de 70% dos investimentos para o interior e às políticas que valorizam a diversidade cultural.Na conversa, o secretário detalhou ainda ações estratégicas, como a criação da Bahia Filmes e a modernização do Teatro Castro Alves. Confira todos os detalhes na entrevista a seguir.Recentemente, um manifesto assinado por cerca de 100 artistas e pessoas da área trouxe críticas à política cultural do Estado. Como você interpreta esse movimento e quais fatores acredita terem motivado essa reação?Bom, primeiro, eu sou democrata. Na nossa origem, nós defendemos a democracia acima de tudo. Então, lido sempre com muita naturalidade com qualquer movimentação, manifestos, que tragam questionamentos à nossa gestão ou ao projeto que nós representamos. Mas é preciso pontuar algumas coisas. Primeiro, esse manifesto, que é de junho, portanto não é novo, traz algumas informações desencontradas. Por exemplo, ele se baseia num estudo do Observatório da Economia Criativa da Bahia (Obec), da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Esse estudo usa parâmetros de orçamento de 2013 a 2022,anteriores à minha gestão. Ele traz a informação, por exemplo, de que a Secretaria de Cultura não conta com orçamento próprio, o que não é verdade. Nós não só contamos com orçamento próprio, como ele já cresceu 60% desde que assumi. Já executamos, nesses dois anos e meio de gestão, R$ 1,5 bilhão na Secretaria de Cultura. Acho que o debate é necessário, é legítimo, mas tem que se dar a partir de bases verdadeiras. Também essa coisa de dizer que não há diálogo, eu acho estranho, porque o pilar da nossa gestão é o diálogo. Todos os projetos, todas as políticas, desde a formatação do orçamento plurianual do Estado para a área da cultura, tudo isso passou por consulta pública. Nós realizamos conferências, rodadas, formações em toda a Bahia. Essas pessoas também precisam participar desses fóruns. Além disso, a publicação do manifesto na semana passada foi manipulada por um veículo de comunicação que traz adjetivações que não estavam nele de uma forma muito desonesta. Desonesta comigo, mas desonesta, sobretudo, com os leitores deste veículo. Porque, vá lá, ele diz que a expressão não é do jornal, é do manifesto. E está lá publicado o manifesto no jornal e ele não traz essas palavras. Mas estou sendo procurado por uma série de pessoas que assinaram esse manifesto, dizendo, ‘Bruno, me perdoe, não era esse o objetivo’. Portanto, acho que tem aí uma questão…Você acredita que o fato de não ser soteropolitano, mas gaúcho, mesmo após oito anos vivendo aqui, pode ter influenciado de alguma forma? Como avalia esse aspecto?Eu acho que essa questão do preconceito xenofóbico que sofro desde o momento que fui anunciado secretário, já cansou. Porque hoje o meu trabalho, o trabalho do governo Jerônimo na área da cultura, já é de conhecimento. As pessoas sabem qual é a nossa política. Aí que eu acho que mora a crítica. A crítica velada é a territorialização, é a democratização, é um reconhecimento mais amplo dos fazeres culturais que acabou desconcentrando os investimentos e o alvo das políticas. Isso está acontecendo. Mas as pessoas muitas vezes não querem assumir que é isso. Aí falam às vezes no privado, ‘ah, mas as cotas, os territórios’. ‘Ah, porque não tem diálogo’. ‘Ah, é porque não tem investimento’. Eu confio muito no trabalho que nós estamos realizando, e ele tem muito lastro social. A gente recebe a todo momento o reconhecimento desse trabalho que está acontecendo na Bahia. Mas estou disposto a sentar, a dialogar, a corrigir os rumos daquilo que for necessário. Mas esse debate precisa ser feito sempre a partir da verdade.Durante a Feira Literária de Mucugê, em seu discurso, você destacou o processo de interiorização da cultura e apontou esse movimento como um dos motivos para essa reação. Poderia explicar um pouco melhor?Veja, há um histórico de concentração dos investimentos em cultura na cidade de Salvador. Mesmo quando os recursos eram poucos, havia uma concentração em Salvador. Desde que assumimos, nós temos implementado políticas de territorialização e o nosso resultado hoje é o investimento de 70% dos recursos no interior da Bahia e também com políticas afirmativas, que valorizam a diversidade do fazer cultural baiano. Eu creio que é aí que mora o problema. É aí que as pessoas se sentem, de alguma forma, excluídas ou se sentem com menos oportunidades. Mas isso faz parte. Quando a política de cotas nas universidades foi implantada lá atrás, houve um grande debate na sociedade, dizendo que isso ia diminuir a qualidade da universidade, dos profissionais. Muitas pessoas se manifestaram contra e hoje a política de cotas é algo absolutamente incorporado na cultura política e social do país. Não tenho nenhuma dúvida que isso também será com a territorialização da cultura. Mas ele é um processo, obviamente, que precisa ser melhor digerido, tanto pelo campo cultural quanto pela sociedade como um todo.O documento questiona a experiência de gestores da Secretaria de Cultura. Como o senhor avalia a importância de formar equipes com histórico na área cultural e qual foi seu critério para escolher sua equipe?Tenho muita confiança no nosso corpo de gestores. São pessoas com experiência na área cultural, na gestão pública e na política. Afinal de contas, nós estamos em um ambiente político. Agora é uma nova geração de gestores. Começando por mim, mas todo o meu corpo dirigente é de uma nova geração. Eu acho que as pessoas também precisam compreender que há um processo de renovação geracional em curso que traz uma nova energia, traz novas ideias, traz novas formas de fazer e é isso que nós estamos implementando na cultura.Já conversou com algumas das pessoas que assinaram o manifesto? Como tem sido essa interlocução?Eu sempre estive e sempre estarei aberto ao diálogo. O diálogo é um dos pilares da nossa gestão. Eu tenho muita confiança nos diálogos que nós estamos fazendo em toda a Bahia. Mas o diálogo, para mim, não se resume a dois ou três bairros de Salvador. Eu não posso considerar que o diálogo só vai acontecer no circuito entre o Teatro Vila Velha e o Teatro Castro Alves. Eu dialogo nesses lugares, como dialoguei por sete horas com o setor do teatro, mas diálogo com quilombolas, com comunidades indígenas, com terreiros, com associações comunitárias, com fazedores de cultura na sua diversidade em toda a Bahia. Não tem problema de diálogo nenhum. Agora, o diálogo está acontecendo com todas as pessoas.Mudando de assunto, você já afirmou que leis como a Rouanet e a Aldir Blanc têm gerado resultados econômicos positivos e beneficiado principalmente o interior da Bahia. Como a secretaria tem lidado com a desinformação sobre esses mecanismos e qual o impacto concreto desses recursos na produção cultural local?Quando nós começamos a aplicar esses recursos federais e fazer os investimentos que precisam ser feitos na cultura em toda a Bahia, nós nos deparamos com a dificuldade de muitas comunidades e grupos culturais em, primeiro, ter alguma regularidade nas suas instituições, ter documentação, e também de participar dos processos digitais. Por isso, nós temos precedido todos esses movimentos de formação. Nós temos feito oficinas de formação presenciais nos nossos centros de cultura, em escolas, nos equipamentos culturais, online. Nós temos feito isso como uma forma de gerar pertencimento e para que o conjunto dos fazedores de cultura da Bahia saibam que tem direito a esse recurso e pode ter acesso. Isso tem gerado uma participação inédita. Eu uso como exemplo agora os editais da Política Nacional Aldir Blanc, que foi a última grande leva de editais que fizemos. Nós tivemos 1.100 projetos contemplados e mais de 10 mil inscritos. Aumentou muito a participação das pessoas porque realmente há mais interesse, há mais informação. Considero esse um processo irreversível. Quando a gente vê as pessoas inseridas entendendo que a política também é para elas, que o recurso também é para elas, isso gera um empoderamento muito grande. É isso que nós queremos. Isso traz resultados muito concretos e que expressam a diversidade e a riqueza da cultura da Bahia.O fato de a ministra da Cultura, Margareth Menezes, ser baiana facilita o diálogo e a parceria entre a Secretaria de Cultura do Estado e o Ministério da Cultura? Como essa proximidade tem refletido em projetos concretos para a Bahia?Uma das premissas do governador Jerônimo Rodrigues é nós atuarmos em muita parceria com o governo do presidente Lula. E na área da cultura nós temos feito isso. Eu dialogo muito com a ministra Margareth, com sua equipe, desde o início. Mas o que nós temos estabelecido é atuar de forma complementar. Hoje nós temos recursos muito vultosos que vêm do governo federal, como foi na lei Paulo Gustavo e é na política Aldir Blanc. Mas temos políticas próprias, o orçamento da Secretaria de Cultura do Estado, que vêm complementar. Se nós vamos ter uma política mais ousada de fomento às artes por meio dos recursos federais, o recurso próprio tem sido utilizado, por exemplo, para a reforma de equipamentos culturais, para a qualificação das pessoas. Então, nós temos atuado de forma integrada, mas também complementar. Buscando sempre dar mais escala e fazer com que a nossa política chegue a mais lugares. E a política de cultura da Bahia é uma política também consolidada. Por exemplo, toda a parte do Fundo de Cultura apoia instituições de forma continuada e eventos calendarizados. Isso é anterior a minha gestão. Nós aprimoramos e aumentamos isso, mas é uma política que já vem de antes. Ela serviu de base para políticas nacionais recentemente. É uma relação de troca que fortalece muito a nossa ação.Você mencionou os equipamentos culturais, e um ícone da cultura baiana, o Teatro Castro Alves, está atualmente em reforma, com previsão de reabertura em 2026. O que a população baiana pode esperar desse novo espaço e em que estágio estão as obras?O Teatro Castro Alves é o maior complexo cultural do Norte e Nordeste brasileiro. Nós temos uma responsabilidade muito grande ao assumirmos o compromisso com essa que é a maior intervenção na história do teatro e que vai modernizar suas estruturas e está ampliando os seus espaços, as suas possibilidades e também tornando acessível. Acessível a pessoas com deficiência, que não era quando foi concebido na década de 50. Mas também na acessibilidade, pensando em um espaço para a formação, um espaço que acolha a diversidade da cultura baiana. Essa obra, nós podemos dizer que ela se divide basicamente em três etapas. A primeira etapa foi aquela etapa de planejamento, de projeto, de autorizações legais, especialmente do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), porque é um equipamento tombado. Nós descascamos aquele prédio inteiro, tudo foi desmontado. A partir disso nós passamos para essa segunda fase, que é a fase já de construção, mas sobretudo com a troca da cobertura, que está com dois terços concluída. Essa é uma parte muito determinante para a terceira e última fase, que é a fase da montagem. Especialmente da sala principal, a colocação das poltronas, toda a vestimenta cênica, equipamentos de luz e som. Tudo isso dependia, obviamente, da mudança da cobertura, que nós devemos concluir agora no final de setembro. É uma obra muito vultosa, de R$ 260 milhões, que demora, porque é um equipamento muito grande e tombado, e necessita de uma série de cuidados. Mas é uma obra que nos dá segurança de que a Bahia terá o seu teatro, o Teatro da Bahia, que é o Teatro Castro Alves, como o mais moderno do Brasil no primeiro semestre do ano que vem.Falando de outro equipamento que também está em reestruturação, o Solar Boa Vista, como ele será transformado para fortalecer a economia criativa?O Solar Boa Vista nós pensamos nele a partir de duas lógicas. Primeiro é a preservação de um patrimônio, que é o casarão de Castro Alves e aquele complexo como um todo. Mas também trazendo para uma agenda que é das mais importantes desse momento da cultura, que é a agenda da economia criativa. Esse é um dos setores que mais cresce na economia do Brasil e do mundo e que necessita, portanto, de projetos, de políticas públicas para o seu desenvolvimento. Estamos criando no Parque Solar Boa Vista o Parque de Economia Criativa da Bahia, que vai servir como uma incubadora de projetos, de formação para nós desenvolvermos e impulsionarmos os projetos do Parque de Economia Criativa. É preparar os trabalhadores da cultura para empreenderem, para prepararem projetos, para fazerem captação. Esse projeto também já teve uma primeira fase, que foi a fase de roçagem e limpeza. Então nós tivemos já isso concluído e agora estamos com dois processos de licitação em andamento. O escoramento emergencial do casarão de Castro Alves e o concurso de arquitetura que vai dar o projeto definitivo do que nós faremos ali. Além disso, nós temos uma dinamização do Cine Teatro Boa Vista que fica naquele complexo, que hoje está abrigando a Orquestra Sinfônica da Bahia durante o período de obras do TCA. Mas pensando também numa integração maior daquele espaço com aquela comunidade especialmente.Em fevereiro, foi aprovada a criação da Bahia Filmes, que se tornou a primeira empresa estadual de audiovisual do país. De que forma ela dinamizará o setor?Se eu falei da economia criativa como uma área proeminente da cultura, nós podemos dizer que o audiovisual é a área de maior destaque dentro da economia criativa. Porque é uma área que tem um mercado muito pujante, muito aquecido, mas também o audiovisual se relaciona com vários outros setores. Uma produção audiovisual mobiliza transporte, hospedagem, alimentação, figurino, são muitos profissionais envolvidos. E o setor do audiovisual na Bahia já tem uma presença muito forte. Nos últimos anos, sem uma organização estatal desse porte, o setor movimentou R$ 170 milhões. Nós não temos nenhuma dúvida que agora, com a Bahia Filmes, que vem para ajudar a organizar o setor, isso vai crescer muito. O que a empresa faz? Ela dá suporte para todas as áreas da cadeia do audiovisual. Tanto na atração de novas produções para a Bahia, quanto na prestação de serviços para o setor público e privado. Mas também financiando obras que faltam concluir ou que já foram feitas. Por exemplo, boa parte delas já foi produzida, mas ficou faltando uma finalização, ou obras que foram concluídas em outros momentos, mas não foram comercializadas, não circularam. A empresa vem justamente para isso, para unir essas pontas e organizar o setor para promover um novo momento de desenvolvimento do audiovisual e, por consequência, da economia criativa da Bahia.Para concluir, como você avalia o impacto do investimento de R$ 24,3 milhões do Estado em festas, feiras e festivais literários na promoção da cultura em todo o Estado?Os eventos literários hoje que acontecem por meio do programa Bahia Literária, fizeram da Bahia o estado brasileiro que mais investe em feiras literárias no Brasil. E isso é, talvez, hoje, a concretização mais palpável da nossa política de territorialização. Porque começou com um apoio a 10 feiras, depois passou para 30, passou para 50, hoje nós estamos em quase 100 e há demanda praticamente nos 417 municípios. Porque a feira literária, além de ser um momento de formação de novos públicos, de oportunidade de aquecimento econômico do mercado editorial, de oportunidade para novos e novas escritoras mostrarem suas obras, de uma integração muito forte da cultura com a educação, elas se transformaram num evento que é um polo agregador das outras linguagens artísticas. Uma feira literária tem exposições, tem dança, shows, apresentações de teatro. Ela mobiliza o conjunto das linguagens artísticas do município e do território, mas também com forte inserção na economia. Semana passada nós estávamos em Mucugê. A rede hoteleira praticamente lotada, os restaurantes funcionando no limite de sua capacidade. Isso é uma contribuição muito grande também para a economia desses municípios, gera emprego e gera renda. Então é a contribuição da cultura para aquilo que eu digo que é quase um ciclo completo. Desde o incentivo a novas pessoas a terem contato com a literatura, que é um desafio hoje em dia com as novas tecnologias. Nós temos essa atenção, sobretudo da juventude, para a literatura, mas também para o desenvolvimento do conjunto das artes e da economia.Raio-XJornalista, produtor e gestor cultural, Bruno Monteiro tem 42 anos e é secretário de Cultura da Bahia desde janeiro de 2023. Como gestor, foi chefe de gabinete no Ministério dos Direitos Humanos e no Ministério das Políticas para as Mulheres, além de assessor especial da Presidência da República. Como produtor, trabalhou com diversos artistas, incluindo Caetano Veloso. É presidente de honra do Conselho Estadual de Cultura da Bahia e integra o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura.
‘A democratização da cultura gerou essa reação’, diz Bruno Monteiro
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