Pensamentos em noite insone

Os ouvidos de Eron acolheram anteontem as tristezas de um sujeito cheio da grana, seu amigo desde os tempos de menino. O cidadão estava mesmo jururu, porém semana passada velejava nos mares da Grécia; na anterior, compareceu a uma festança de casamento no Marrocos; há dois meses, visitava Tóquio pela enésima vez, e volta e meia dá um pulinho em Paris. Se a vida é difícil pra quem tem dinheiro, imagine pra quem não tem. Os ricos habitam um planeta à parte, e é curioso Eron ser durango e ao mesmo tempo ter contato com quem decide, de chofre, passar um feriadão em Istambul e basta adquirir a passagem; o resto já nasceu resolvido, inclusive o assento na 1ª classe. Gosto de jogar Paciência e às vezes me assombra uma partida que se define em menos de dois minutos, enquanto algumas só consigo vencer refazendo lances pra lá e pra cá. Outras, ainda, travam sem remédio. O primeiro caso, quando tudo dá certo, se assemelha ao que o destino reservou para o sorumbático viajante: viveu um longo relacionamento com o herdeiro de uma sólida empresa e ninguém jamais duvidou de que estava junto a ele por amor, principalmente porque o marido precisou suar foi muito até conquistá-lo. Como, infelizmente, a sorte tem seus caprichos, André veio a falecer ainda cinquentinha. O amigo de Eron o acompanhou dia e noite no hospital durante exatos 30 dias, num desvelo comovente, passando depois a constituir o conselho da empresa, embora fosse estranho ao ramo. Demonstrou tamanha competência que logo foi alçado a presidente e mantém a posição até hoje. Conseguiu dar conta, com distinção, da oportunidade que lhe caiu no colo, e sabe que sua vida teria sido bem diferente se, lá atrás, o mauricinho não tivesse se engraçado com a covinha única no lado esquerdo de seu rosto. Durante meus dias modestos – que assim o são pelo fato de eu tampouco ter corrido atrás de enriquecer e herdeiro nenhum ter me batido a passarinha – há ocasiões quando se instala em meu espírito uma desolação que impediria uma próxima manhã, caso eu não me mantivesse firme na certeza de que toda tempestade passa. Às vezes, a espera é muito dolorosa, mas me agarro à bonança que virá: futuro do presente, modo indicativo. Tomei conhecimento de que na língua vietnamita inexiste o subjuntivo, ou seja: não há hipóteses se gabando de possuir modo verbal exclusivo, sendo expressas de maneira mais tímida. Teria sido isso o que levou os vietcongues, tão inferiores militarmente, a resistir ao agente laranja e demais atrocidades estadunidenses? Era vencer ou vencer, porque na cabeça deles era só o que cabia? Me parece plausível que a linguagem contribua para moldar nosso pensamento. Sabemos também que a perda de tantos jovens de Minnesota, Arizona e outros 48 estados colaborou para o fim do conflito. Vinte anos enterrando filhos, irmãos, maridos, pais e noivos fizeram com que essa dor se impusesse a quaisquer outros interesses. Triunfou o coração. Sempre estivemos submetidos a quem manda. Individualmente, temos cada um bocados de decência e bondade, e até os psicopatas merecem compaixão, porque não são culpados de ter nascido assim. Só não podem ficar soltos, trucidando inocentes, e aí se estabelece uma questão complicada, que é a de quando ascendem ao poder e se manifestam de maneira mais abrangedora, não atacando apenas quem tem o infortúnio de cruzar com eles. Estamos longe de compreender os gruminhos do cérebro. Quem, em sã consciência, não desejaria uma vida digna para si e para os outros? Precisei atiçar minhas feras num grupo de zap da família, a fim de que parassem de defender os donos do mundo – como se alguém ali constasse da lista da Forbes. Todos querem se sentir porretas e assim preferem se identificar com os porretas. Criei caso até conseguir que alguns se calassem: Vocês estão do lado das cochonilhas sugadoras da seiva das plantas? Às vezes, meus argumentos convencem, mas nem sempre. Ainda tem quem me peite e a lutcha continua. Já deixei bem claro que, no dia em que me virem apoiar o que não pretenda uma vida melhor para a maioria das pessoas, podem ter a certeza de que enlouqueci. Louca, clamo para que me torrem, serena, em frente ao Monumento ao Caboclo, sempre tão fedido da bosta de quem não tem outro canto pra soltar o barro que nos constitui.*ró-Ã é autora do livro Dor de facão & brevidades
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