Heróis invisíveis: conheça os moradores que fizeram história em Cachoeira

Imagine um importante centro comercial da Bahia do início do século 19, como Cachoeira, mobilizando-se para concretizar a Independência do Brasil. Está bem. Não é exatamente uma novidade. Mas agora imagine que no esforço coletivo de mulheres, homens, adolescentes, brancos, indígenas e negros, alguém tem a ideia de utilizar artefatos mecânicos de um engenho de cana para improvisar um estilingue gigante e arremessar pedras em direção ao navio português atracado às margens do Rio Paraguaçu.Essa estratégia foi pensada por Luiz Osana Madeira, um rábula pardo, filho de uma mulher escravizada, que militava pelo abolicionismo e se engajou também na luta independentista. A história de Luiz é uma das 282 descrições de personagens feitas pelo historiador cachoeirano Igor Almeida, que lançou este ano o Dicionário Histórico Biográfico dos Moradores da Histórica Cachoeira – Século XIX.As informações sobre o estilingue foram obtidas por meio da análise dos documentos do memorialista Aristides Milton, que viveu em Cachoeira entre 1840 e 1903 e conheceu Luiz Osana Madeira, morto em 1869. Além disso, em suas pesquisas Igor consultou o Arquivo Público Municipal de Cachoeira, o Arquivo Público do Estado da Bahia e o Arquivo Histórico Ultramarino em Lisboa, Portugal.Fim do domínioA partir de documentos históricos, o livro traz informações sobre pessoas que viviam em Cachoeira no período da Independência e que contribuíram para o fim do domínio português na Bahia. “São nomes que em sua esmagadora maioria, eu diria 95%, as pessoas não conhecem”, afirma o pesquisador.A história do rábula Luiz Osana impressiona. “Ele atuou como abolicionista, numa época em que ainda não se falava em abolicionismo. Ele lutava por pessoas que tinham a sua liberdade usurpada”, conta Igor, que registrou no livro três casos de pessoas defendidas por Osana.Mas Luiz não foi uma exceção. A cidade como um todo se mobilizou pela Independência, como já se sabia. O que o livro traz são detalhes sobre as vidas desses guerreiros desconhecidos, alguns deles condecorados em 1826 pela Câmara Municipal de Cachoeira, em razão da sua bravura.Entre os heróis populares apresentados no trabalho, há homens negros letrados, como Manuel Esmeraldino do Patrocínio, um ex-escravizado que recebeu alforria e trabalhou como procurador na Câmara Municipal de Cachoeira e possuía um negócio. “Ele possuía uma casa de armação, que seria quase como uma funerária nos dias de hoje”, argumenta Igor.Além da guerra pela Independência como uma temática central, o livro trata de alguns personagens a partir de outros olhares, como mulheres mercadoras da época, comerciantes, a então recém-criada Irmandade da Boa Morte, produção de fumo e elites não-brancas, entre outros.”Um dos aspectos importantes do livro é recuperar nomes de mulheres desconhecidas da Irmandade da Boa Morte. Muito se fala da instituição, mas há uma carência documental”, aponta Igor, para quem o livro aporta uma contribuição inicial para quem quer pesquisar o tema.

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O livro também traz pistas sobre o êxodo de soteropolitanos para Cachoeira quando os portugueses atacaram Salvador durante a guerra. “Em seu testamento, Caetana do Sacramento cita pertences seus saqueados pelos lusitanos durante a invasão”, aponta o pesquisador.Feito paralelamente às suas pesquisas acadêmicas, o trabalho de campo foi custeado pelo próprio Igor. “Eu estudei a vida inteira em instituições públicas, então, acho que isso é uma forma de devolver um serviço social à comunidade”, justifica o pesquisador, ressaltando que o século 19 foi a base de importantes manifestações culturais de Cachoeira, como a Festa da Boa Morte e o 25 de junho, data que marca o início da batalha contra os portugueses em 1822, e quando a cidade recebe anualmente o título de capital da Bahia por um dia.

O historiador cachoeirano Igor Almeida, autor do livro

|  Foto: Divulgação

Fontes valiosasA Fundação Pedro Calmon financiou 90% do valor de publicação da obra. “O livro apresenta uma perspectiva e uma metodologia inéditas, porque busca contar a história a partir da vivência dos personagens, dos moradores de Cachoeira”, afirma Igor.Isso não se aplica apenas aos cachoeiranos. À época das lutas pela Independência do Brasil na Bahia, a cidade era o segundo maior centro comercial da província e atraía pessoas de diferentes localidades, inclusive estrangeiros.Orientadora de Igor no doutorado em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, a professora Camila Santiago destaca a dimensão do que foi feito pelo pesquisador ao longo de três anos. “Ele tem uma experiência muito vasta em arquivos e a capacidade de trabalhar com fontes de diversas naturezas, como manuscritos, periódicos, fotos e fontes orais”, afirma a professora.

|  Foto: Divulgação

Camila ressalta também a qualidade do material produzido: “É um livro que abarca pessoas que em algum momento do século 19 moraram em Cachoeira e organiza essas fontes, contando a trajetória individual de cada um, com um texto muito bem escrito e acessível ao público leigo”, explica a professora, pontuando que através das trajetórias individuais Igor lança luz sobre a história de Cachoeira.O historiador e professor da UFRB Sérgio Guerra Filho endossa os elogios. “O trabalho de Igor é muito valoroso. Ele conseguiu reunir e compilar informações sobre muitas personalidades”, atesta Guerra.O professor destaca que, em alguns casos, as personagens do livro têm a sua trajetória traçada do nascimento até a morte. “Isso é importante porque, às vezes, a gente concentra os nossos estudos em um período. No meu caso, o período da Independência. O trabalho de Igor traz mais informações sobre as pessoas que naquele momento participaram da guerra”, avalia o professor.

Serviços

Dicionário Histórico Biográfico da Heróica Cachoeira – Século XIX
Editora Appris
648 páginas
R$ 130
Para comprar o livro, procure no Instagram por @diciohistorico e @irobalmeida

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