
Nos Estados Unidos, a proibição de água fluoterada tem sido debatida nos estados. Na União Europeia, 14 de 28 países nunca adicionaram o mineral na água por diferentes motivos
No Brasil, a adição de flúor à água tratada é obrigatória por lei desde 1974
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Desde que os cientistas descobriram que pessoas que viviam em locais com níveis mais altos de flúor na água tinham taxas menores de cárie dentária, alguns países passaram a adicionar o flúor à água potável como uma forma de melhorar a saúde bucal.
No Brasil, a adição de flúor à água tratada é obrigatória por lei desde 1974. Segundo a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a fluoretação da água reduziu a prevalência de cáries entre 50% e 65% após dez anos de exposição à substância.
Mas a oposição ao flúor está se espalhando no mundo, e especialmente nos EUA.
O mineral apareceu recentemente no relatório Make America Healthy Again (Faça a América saudável de novo, na tradução livre para o português) sobre doenças na infância, em meio a uma longa lista de fatores responsáveis pela crise de doenças crônicas que afeta as crianças nos Estados Unidos.
O influenciador de bem-estar Calley Means, que atua como conselheiro do governo dos EUA, disse que o uso de flúor na água potável é um “ataque às crianças de baixa renda” e sugeriu que os pais joguem fora pastas de dente que contenham flúor.
A opinião do influenciador parece estar alinhada com a de Robert F. Kennedy Jr., secretário de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos. A irmã de Calley, Casey Means, também foi indicada por Donald Trump para o cargo de cirurgiã-geral dos EUA.
No final de março de 2025, Utah se tornou o primeiro estado americano a proibir o uso de flúor no abastecimento público de água.
No início de maio, o governador da Flórida, Ron DeSantis, também sancionou uma lei que bane “certos aditivos” do sistema de água, o que inclui o flúor — encerrando uma prática que vinha sendo adotada desde 1949.
Em abril, Kennedy Jr. anunciou que instruiria os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos a recomendarem contra a fluoretação, enquanto a Agência de Proteção Ambiental conduz uma revisão nas evidências científicas sobre os possíveis riscos à saúde relacionados à adição de flúor na água.
Evidências científicas
Muitos cientistas consideram a fluoretação da água para abastecimento como uma vitória da saúde pública — que tem reduzido as taxas de cáries e melhorado a saúde bucal de milhões de pessoas ao redor do mundo.
Algumas revisões recentes de evidências sugerem que os benefícios podem não ser os mesmos que eram 50 anos atrás, antes de o flúor estar amplamente disponível em pastas de dentes, apesar de ainda ser benéfico.
Uma revisão feita em 2016 na Austrália descobriu que a água com flúor reduziu em 35% as cáries nos dentes de leite das crianças. Já um relatório de monitoramento de 2022 na Inglaterra também identificou o mesmo percentual de redução de cáries em crianças de três anos.
Esse efeito é ainda maior em crianças vivendo em áreas mais carentes, com menos acesso a tratamentos odontológicos ou mesmo à escovação regular.
Introduzida inicialmente na cidade de Grand Rapids, no estado do Michigan, em 1945, a fluoretação de água para abastecimento é praticada hoje em cerca de 25 países, incluindo o Brasil, a Malásia, Cingapura, Irlanda, Espanha e partes do Reino Unido. No total, a água potável fluoretada é fornecida para mais de 400 milhões de pessoas no mundo.
Nos Estados Unidos, cerca de 63% da população — 209 milhões de pessoas — consome água com flúor. Para quase de 12 milhões, o mineral não é adicionado, mas é natural do abastecimento de água.
Um dos argumentos contra a fluoretação é que alguns estudos associam a exposição ao flúor a uma leve redução de média do QI de crianças, como destacado em uma meta-análise de 2025 — um tipo de estudo que combina resultados de várias pesquisas anteriores.
Contudo, em revisões detalhadas das evidências, cientistas concluíram que essa associação acontece quando os níveis de flúor estão o dobro acima do limite recomendado nos Estados Unidos, além de terem identificado problemas metodológicos e estatísticos significativos nessa meta-análise de 2025.
Os que se opõem à fluoretação artificial da água também apontam para o fato de que a maioria dos países no mundo não adicionam o mineral na água.
Mas isso é verdade? E, caso seja, por que esses países fazem isso? E quais são os resultados?
‘Flúor ajuda a reduzir desigualdades’
O flúor é um mineral natural, conhecido por ajudar a prevenir cáries dentárias ao fortalecer a camada externa do dente, o esmalte, e repor os minerais perdidos devido aos ácidos que produzimos quando comemos.
Muitas pessoas fazem uso tópico do flúor, aplicando por meio de uma pasta de dente, por exemplo. Contudo, estudos sugerem que uma exposição contínua, sistêmica e em doses baixas — como no consumo de água potável — é mais efetiva, principalmente em crianças, cujos ossos e dentes ainda estão se formando.
Uma revisão científica de 32 estudos, realizada em 2019, revelou que crianças que viviam em áreas com água fluoretada apresentavam menores índices de cáries do que aquelas que viviam em regiões sem fluoretação.
“A diferença entre a pasta de dente e a água é que, considerando que as pessoas bebem água durante o dia, elas têm uma exposição constante ao flúor em concentrações muito baixas”, diz Vida Zohoori, professora de saúde pública e nutrição na Universidade de Teeside, no Reino Unido, especialista em pesquisas sobre flúor e coautora das diretrizes de 2022 sobre fluoretação da água da Associação Internacional para Pesquisa Dental, Oral e Craniofacial (IADR, na sigla em inglês).
“O benefícios vêm justamente dessa exposição contínua a baixo níveis de flúor.”
Esse efeito é notado principalmente em crianças de contextos socioeconômicos vulneráveis.
“A fluoretação da água de abastecimento público serve para reduzir a diferença entre pessoas pobres e ricas”, diz Zohoori.
“Ela alcança a todos, toda a população, não apenas grupos específicos e, por isso, ajuda a reduzir as desigualdades na saúde de forma geral.”
Ela destaca a diferença entre a cidade onde a universidade em que ela trabalha está localizada, Middlesbrough, no norte da Inglaterra, da cidade vizinha de Hartlepool. Ambas enfrentam desvantagens socioeconômicas. Mas, a água de Hartlepool tem níveis naturais de flúor de até 1,3 mg/L, diferente de Middlesbrough.
“Middlesbrough é um dos locais com as maiores taxas de cáries em crianças, enquanto Hartlepool tem taxas muito menores”, afirma.
Em março, o Departamento de Saúde e Assistência Social da Inglaterra recomendou a expansão do abastecimento de água fluoretada para áreas do nordeste da Inglaterra, incluindo Middlesbrough.
Excesso de flúor
Mas o flúor em excesso também pode ser um problema. Concentrações superiores a 1,5 mg de flúor por litro podem causar fluorose dentária, uma condição estética que deixa manchas brancas nos dentes. Já níveis superiores a 6 mg/l podem levar à fluorose esquelética, uma condição óssea grave que pode causar incapacidades.
As diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendam que a água potável contenha no máximo 1,5 mg/l de flúor. Nos Estados Unidos, o Serviço de Saúde Pública recomenda até 0,7 mg/l, enquanto as companhias de abastecimento que adicionam flúor na água na Inglaterra são orientadas a manter as concentrações abaixo de 1 mg/l.
As preocupações com o consumo excessivo de flúor são um dos motivos pelos quais alguns países escolhem não fluoretar artificialmente a água para abastecimentos — a água potável desses locais já apresenta, naturalmente, níveis de flúor.
O flúor está presente no solo, nas plantas e na água. Alguns tipos de rochas e solos possuem concentrações maiores do que os outros. “Tudo se resume à geoquímica”, afirma Joel Podgorski, cientista do Instituto Federal Suíço de Ciência e Tecnologia Aquática, em Dubendorf, na Suíca.
Ele destaca, em especial, as rochas ígneas, como as que são formadas pela lava, e que tendem a ter mais quantidade de flúor.
A presença de rochas contendo flúor pode aumentar os níveis do mineral na água subterrânea. Na Itália, por exemplo, as concentrações de flúor na água vão de 0,1 a 6,1 mg/l, mas em áreas com rochas vulcânicas, esses níveis podem chegar a 30,2 mg/l.
Em algumas regiões, como Lácio ou Calábria, o flúor é ativamente removido ou a água é diluída para manter o abastecimento abaixo de 1,5 mg/l, como recomendado pela OMS e pela União Europeia, explica Tommaso Filppini, professor associado de epidemiologia e saúde pública na Universidade de Módena e Reggio Emilia.
Mas há uma variedade de outras razões que fazem com que os países não adicionem flúor na água.
Na Europa, um relatório de 2018 mostrou que, de 28 nações da União Europeia, apenas a Irlanda, partes do Reino Unido e da Espanha colocavam flúor em seus sistemas para abastecimento de água. Onze países haviam adotado essa prática no passado, mas a interromperam, e outros 14 nunca fizeram a fluoretação.
Contudo, países que interromperam programas de fluoretação da água não disseram que fizeram isso por preocupações com a segurança da população, afirma Mary Rose Sweeney, autora líder do estudo e atualmente pesquisadora de saúde pública do Royal College of Surgeons, na Inglaterra.
Em vez disso, eles citaram reclamações da população, como de pessoas que consideravam aquilo uma violação dos direitos humanos ou defendiam que a ingestão de flúor deveria ser uma escolha individual.
Outros países apontaram para o fato de que as populações já obtinham flúor suficiente de outras formas.
Dos 11 países que interromperam os programas de fluoretação, apenas dois citaram as questões de segurança e eficácia — a Finlândia disse que a eficácia do flúor não tinha sido provada, enquanto a República Tcheca citou “debates” sobre segurança da fluoretação. Nenhum deles disse que parou o processo porque o flúor trazia algum prejuízo.
Para algumas dessas populações, o flúor estava naturalmente disponível na água potável, mas para outros, certos alimentos e bebidas continham flúor. De acordo com o relatório de 2018, a Bulgária colocava flúor no leite enquanto a Grécia adicionava o mineral em garrafas de água.
Diferentes abordagens de fluoretação existem fora da União Europeia. Zohoori está atualmente liderando um estudo comparando sistemas de fluoretação no Brasil, Reino Unido, Colômbia e Chile.
“Alguns países, com a Suíça, colocam flúor no sal”, afirma. “O Brasil utiliza a fluoretação da água, a Colômbia, do sal, e o Chile, do leite.”
A experiência em países asiáticos
Uma revisão científica realizada em 2012 em países asiáticos mostrou que países que escolheram não colocar flúor na água fizeram por uma dessas três razões: níveis naturalmente altos de flúor (como em algumas partes da Índia); barreiras técnicas ou financeiras (como no Nepal); ou porque o flúor era fornecido para as comunidades de outras formas.
A Tailândia, por exemplo, não adiciona flúor na água, mas tem um dos maiores programas de fluoretação de leite do mundo. O leite, enriquecido com 2,5 mg/L de flúor, é distribuído gratuitamente para mais de um milhão de crianças, diariamente, em escolas públicas. As crianças também recebem o leite fluoretado durante as férias escolares.
O programa tailandês inclui educação em saúde bucal, exames odontológicos de rotina e aplicação de flúor — geralmente feita por um dentista — diretamente nos dentes, além de sessões supervisionadas para escovação de dente com pastas dentais fluoretadas.
Um estudo mostrou que, com um custo de apenas US$ 0,40 (cerca de R$ 2,20 na conversão atual) por criança ao ano, essa abordagem reduziu em mais de um terço a prevalência de cáries.
Flúor no leite e no sal
Depois da água fluoretada, a adição de flúor ao sal é a segunda forma mais comum encontrada pelos países para fornecer o mineral à população, segundo a revisão de 2018.
O primeiro país a colocar flúor no sal foi a Suíça, em 1955.
Assim como o leite, o sal fluoretado também é eficaz na redução de cáries dentárias, mas menos eficiente do que a água. Em média, o sal fluoretado contém cerca de 0,5 a 0,75 mg de flúor por dia na ingestão de uma pessoa, enquanto adultos precisam de cerca de 3 mg diariamente.
Zohoori diz que o sal pode não ser a melhor opção de todas. “Como nutricionista, eu não quero incentivar o consumo de sal”, diz. “Para mim, a água fluoretada é o melhor método.”
O acesso a serviços odontológicos também pode influenciar a decisão de um país para colocar flúor na água. Um estudo de 2015 encontrou disparidades enormes no acesso à saúde bucal entre os Estados Unidos e alguns países da Europa.
Em cinco dos 10 países europeus pesquisados, mais de 75% dos participantes disse ter cobertura odontológica. Isso incluiu 98% na Alemanha, 96% na República Tcheca e 92% na Dinamarca.
Nos Estados Unidos, apenas 48% disse ter cobertura para esse tipo de tratamento.
Ainda assim, Zohoori alerta que é preciso cautela ao olhar para os níveis relativamente baixos de fluoretação de água na Europa e usá-los como um motivo para interromper a prática em outros lugares. Segundo ela, a Europa não tem um histórico bom em saúde bucal.
Um relatório da OMS de 2023 mostrou que a Europa tem a maior taxa de prevalência de doenças bucais graves do mundo, incluindo cáries permanentes nos dentes. Mais de um em três adultos têm cáries.
“Entre os 28 países da União Europeia, o custo para tratamento de cáries é mais alto do que para doenças como Alzheimer, câncer ou AVC”, diz Zohoori.
“As cáries são o terceiro problema de saúde mais oneroso no geral, atrás apenas de diabetes e doenças cardiovasculares.”
O caso do Japão
No Japão, a água potável não é artificialmente fluoretada, mas o mineral é distribuído ao público de outras formas, como em bochechos com flúor em escolas de várias prefeituras.
Alguns pesquisadores defendem que o Japão deveria considerar mudar sua política de fluoretação da água potável.
Um estudo de 2023 com cerca de 35 mil crianças, entre 5 anos e meio e 12 anos, revelou que quatro a cada dez crianças de 7 anos tinham feito tratamento dentário por causa de cáries apenas no ano anterior. Isso representa uma proporção alta, considerando que, em média, as crianças no Japão consomem menos açúcar e menos doces do que nos países europeus.
Os pesquisadores também descobriram que as crianças no Japão, que vivem em áreas com níveis mais altos de flúor natural, tinham menos cáries. Cada aumento de 0,1 parte por milhão na concentração de flúor estava associado a uma redução de cerca de 3,3% na prevalência de cáries.
“Esses resultados sugerem a possibilidade de reduzir cáries por meio da utilização do flúor em nível populacional no Japão”, escreveram os autores do estudo.
Enquanto alguns países, como os Estados Unidos, discutem remover o flúor da água, outras regiões já tomaram essa decisão e depois a reverteram.
Um exemplo conhecido é de Calgary, no Canadá, que parou de colocar flúor na água em 2011 — e, após ver um aumento nos casos de cáries dentárias, decidiu restabelecer a fluoretação no início deste ano.
“No fim das contas, se o flúor for removido da água, isso será mais uma desigualdade na saúde. Serão as comunidades mais vulneráveis que sentirão esses efeitos de forma desproporcional”, afirma Sweeney.
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