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O que lhe trouxe a Salvador?Esse é meu primeiro ano morando aqui. Desde 2018, comecei a vir para cá como parte de uma pesquisa, por causa da Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira nas escolas. Essa lei foi fortemente movimentada por educadores baianos, então passei a frequentar Salvador buscando referências e práticas pedagógicas alinhadas à educação antirracista e à implementação da lei. Comecei a vir com frequência, até que neste ano me mudei de vez. Casei e vim morar aqui. Tive até um baianinho [em junho deste ano, Clarissa deu à luz a Ayô Antônio]. Na prática, é uma legislação que já tem mais de 20 anos. Ou seja, é uma lei que já é maior de idade, mas que ainda precisa andar de mãos dadas com alguém.Como assim?
Historicamente, a escola é um espaço marcado por ideologias. Romper com essa estrutura, com essa lógica eurocêntrica e colonial, é muito desafiador. Trata-se de uma revolução curricular. Hoje, temos muitas pesquisas disponíveis. Não é mais possível dizer: “Eu não tenho material, não sei como fazer”. A questão está no movimento. As instituições precisam investir na formação de seus educadores e os próprios educadores precisam se aprofundar cada vez mais, entendendo que não há justificativa para não agir, a não ser a manutenção do racismo
Qual é o principal desafio para a implementação da lei?O racismo. Trata-se de uma lei que já foi criada com orientações, respaldo e ferramentas para sua implementação. Então, por que ainda vivemos tantas dificuldades em relação a isso? Por isso é tão importante a formação de professores, a presença de educadores negros nas escolas, de pesquisadores e profissionais comprometidos com uma prática pedagógica antirracista. Ainda assim, esse processo tem sido lento. As conquistas acontecem, mas de forma gradual. Isso porque há um enfrentamento, uma disputa em torno da construção curricular e das relações estabelecidas na escola. Estamos falando de outra forma de viver as relações raciais dentro do ambiente escolar. Não se trata apenas do conteúdo que se ensina, mas de como essas relações se constroem no cotidiano da escola.O avanço das religiões neopentecostais é um obstáculo para a implementação da lei dentro da sala de aula?Sem sombra de dúvida. Quando falamos de intolerância religiosa, estamos, na verdade, falando de racismo. Às vezes, damos outros nomes para especificar ou tentar analisar a questão de forma mais detalhada, mas o pano de fundo é o mesmo: o racismo.
Qual é a religião perseguida? São as religiões de matriz africana, religiões de preto, de corpo e cor. É evidente que esse movimento impacta diretamente a escola. Por isso, é fundamental que as instituições de ensino estejam respaldadas, conhecendo o que diz a lei, para que possam agir com segurança. Não se trata de justificar, mas de compreender e reconhecer essa história e esse legado dentro do espaço escolar
De que maneira a lógica capitalista, que trata o aluno como cliente, dificulta a implementação de mudanças curriculares?É claro que, mesmo na escola pública, ainda existem desafios na implementação da lei. Mas é muito importante lembrar que a escola, mesmo sendo privada, é um serviço. No entanto, não é como um restaurante ou como comprar uma roupa. Trata-se de um serviço em que você, de alguma forma, está compactuando com um projeto político-pedagógico.
Nesse momento em que muitas famílias estão escolhendo escolas, é importante reforçar que nem todas são iguais. As pessoas devem buscar instituições de ensino alinhadas aos seus princípios éticos. Caso contrário, acabam entrando em um espaço onde sentem que precisam modificá-lo para poder permanecer, quando, na verdade, isso não deveria acontecer. Hoje, existem muitas instituições com os portões abertos. Por isso, é essencial escolher uma escola que compartilhe dos seus valores, para que seja possível educar e formar seus filhos em parceria com a escola.
De que forma as famílias e educadores podem avaliar se uma escola adota práticas pedagógicas decoloniais?Acho que a primeira coisa que salta aos olhos das famílias, dos educadores, é o lugar da representatividade. Quais são os referenciais teóricos dessa escola, por exemplo. Precisamos de práticas pedagógicas que rompam com as inverdades históricas ensinadas no país ou que, no mínimo, contem a história de forma completa. Ainda temos, muitas vezes, uma visão hegemônica sobre o que é ou não considerado conhecimento. Essas são práticas fundamentais. Se olharmos para a literatura adotada por uma instituição de ensino, precisamos questionar: ao escolher uma escola para meu filho ou minha filha, será que ele ou ela vai passar toda a educação básica sem ter contato com autores negros, no país em que vivemos e na cidade em que estamos? Salvador é a cidade com a maior população negra do Brasil, e a literatura da escola não dialoga com essa realidade. Isso precisa ser visto como um problema.Muitas escolas têm a pretensão de formar o aluno para o mundo. O que isso significa para você? Quais habilidades são, de fato, essenciais?
Os alunos estão no mundo. É muito ousado pensar que a escola vai formar o estudante para o mundo, porque a escola é o mundo acontecendo. Ela é um tubo de ensaio da sociedade. Tudo que acontece aqui fora acontece dentro dela também. Pensando nesse lugar da escola como reflexo da sociedade, como esse espaço em que o mundo se manifesta, acredito que a escola precisa se reafirmar como um lugar de formação ética
Um espaço para refletir sobre o que fazer com o conhecimento que se tem, com as habilidades que se desenvolvem. Não basta saber uma informação. Não é apenas entender como é o clima, por exemplo, mas compreender qual é o meu lugar no mundo e que impacto posso ter com aquilo que descubro e aprendo. Que legado quero deixar a partir do que sei.Como a escola pode ressignificar seu papel diante das transformações sociais e tecnológicas atuais?O pensador Aristides Filho diz que a escola tenta acompanhar o que acontece no mundo, mas quase sempre vem depois. As transformações do lado de fora dos muros das instituições exigem que a escola se atualize constantemente. E isso nos coloca diante de um grande desafio: o aluno de ontem não é o mesmo de hoje. Atualmente, uma criança ou um jovem não precisa mais chegar à escola para descobrir as primeiras letras ou os números. Vivemos em uma era de acesso fácil à informação e aos dados, o que impõe à escola uma nova situação. Se ela já não é a detentora exclusiva do conhecimento, qual é, então, o seu papel? Nesse contexto, a escola tem ressignificado seu lugar e compreendido que sua função é, cada vez mais, ajudar a construir sentido a partir do conhecimento. Esse talvez seja o maior desafio atual: diante de alunos que chegam com uma grande bagagem de informações, a escola precisa investir nas suas escolhas pedagógicas para conseguir atender a essa nova realidade. O que fazemos com o conhecimento disponível hoje? As famílias também passaram a participar mais ativamente, especialmente no período pós-pandemia. Com o ensino remoto, muitas vivências que antes pertenciam exclusivamente ao território escolar passaram a ser acompanhadas de casa. Não porque eram proibidas, mas porque simplesmente aconteciam dentro da escola. Esse movimento trouxe ganhos e desafios. De um lado, há um bônus na maior aproximação entre família e escola para a formação do sujeito. De outro, surge a necessidade de rediscutir limites. É preciso definir o que pode e deve ser dialogado com as famílias e o que faz parte das decisões internas da escola, tomadas a partir de fundamentos filosóficos, curriculares e de pesquisa. Na minha visão, a escola deve apoiar os pais com portas abertas. Precisamos construir comunidade. Esse é o caminho: entender que a escola é comunidade. E isso se faz com os alunos e com suas famílias.