Casa Barriga: espetáculo resgata legado da arte para a infância

Quando se tem a imagem de um pequeno ser vivo em um ventre, em contagem regressiva para chegar ao mundo, é difícil ficar indiferente às notícias de crianças mortas por balas perdidas nas cidades brasileiras, assassinadas na fila por alimentos em Gaza ou exploradas sexualmente mundo afora. E quando um artista trabalha com a infância e a juventude, é natural que a indignação com essas atrocidades seja matéria-prima para uma produção.Esse é o caminho trilhado pela diretora teatral Débora Landim em Casa Barriga, espetáculo da Companhia Novos Novos de Teatro.Inspirado em um livro homônimo da escritora, editora e dramaturga Sonia Robatto, sobre as impressões de um virtual feto, Casa Barriga enfoca um grupo de crianças que se tornam aprendizes no combate ao mal, inspiradas no vínculo com o ventre materno.Mas o texto também inclui observações feitas pelos jovens do novo elenco da companhia. “Ao montar a peça, a gente estava numa fase de transição do grupo e queria incluir o olhar das crianças sobre o mundo que elas habitam”, diz Débora.Um dos eixos do espetáculo são as versões criança e jovem da personagem Camila, nome presente em diversos trabalhos de Sonia, e que na peça atual é integrante de uma família de bordadeiras e se questiona sobre o sentido da vida. O porquê das guerras e da violência.AdultizaçãoUm dos temas que atravessam Casa Barriga, bem como a companhia em si, é a discussão que veio à tona recentemente por meio do influenciador digital Felca, sob o conceito de adultização. “Em 2001, na peça Imagina só, a gente já trazia essa temática. Tinha uma cena com a minimulher, que era o protótipo de uma adulta”, lembra Débora.Ela pondera que se, por um lado, as produções artísticas para o público infanto-juvenil talvez tenham que evitar certos temas por causa do aspecto cognitivo da plateia, certamente as crianças do mundo não deveriam estar inseridas em contextos que não são adequados à infância.

Espetáculo Casa Barriga em ação

|  Foto: Namíbia Yakini / Divulgação

“O grande maestro da existência é o adulto. Se tem criança que passa por preconceito racial, questões de gênero, genocídio ou violência urbana, quem está à frente de tudo isso somos nós”, diz.A peça, que tem dramaturgia do jornalista e pesquisador Edson Rodrigues, é uma síntese da atuação histórica dessas duas mulheres, Débora e Sonia, que se encontraram na virada do milênio, quando Débora ainda dava os seus primeiros passos no Vila Velha com o grupo residente que se tornaria depois a Novos Novos de Teatro, nome sugerido por Sonia.Débora entrou no Vila Velha em 1998, a convite de Hebe Alves, para ensinar nas oficinas de teatro. Logo depois da reinauguração do Vila, e de participar como atriz da montagem Um tal de Dom Quixote, ela começou a desenvolver oficinas para crianças.

Márcio não queria adultos interpretando crianças.

Débora Landim – diretora teatral

Nesse período, o diretor do teatro, Márcio Meirelles, começou a montar Pé de guerra, um texto de Sonia Robatto. O espetáculo tinha um núcleo de atores adultos e outro núcleo, infantil. “Márcio não queria adultos interpretando crianças, e como eu já estava na oficina, trabalhei como assistente dele no núcleo de crianças”, conta a diretora, que já tinha exercido a mesma função com o diretor, mas em um elenco adulto, o Bando de Teatro Olodum.Ao fim da temporada de Pé de guerra, o núcleo infantil da peça se transformou na Companhia Novos Novos de Teatro. O nome do grupo é uma derivação da Sociedade de Teatro dos Novos, a companhia fundadora do Vila Velha, que teve no elenco Othon Bastos, Carlos Petrovich e a própria Sonia.InfânciaA ligação de Sonia com a infância não se limita ao teatro. No final da década de 1960, ela apresentou ao empresário Victor Civita, da Editoria Abril, o projeto da revista Recreio, publicação mensal lançada em 1969 voltada ao público infantil.Sonia também liderou, juntamente com Ruth Rocha, a equipe de redação da revista, que tinha entre os seus colaboradores a escritora Ana Maria Machado e o escritor e historiador Joel Rufino dos Santos.A publicação circulou sob a chancela da Editora Abril até 2014, quando foi vendida à Editora Caras, que se tornaria o Grupo Perfil. Anos depois, a revista deixou de circular como impresso e ganhou uma versão website, mas a história da revista criada por essa baiana não foi apagada.

A Bahia valoriza muito pouco os seus talentos. Sonia Robatto é uma gigante.

Edson Rodrigues. – jornalista, autor e pesquisador

Sobre a importância de Sonia, ele destaca ainda o seu papel na criação de um grupo de teatro em plena ditadura militar.”Foi um ato de resistência, com o governo militar batendo, e logo depois veio o AI-5. Um teatro que sempre foi contestador”, lembra Edson, exaltando o legado de Sonia, colaboradora da companhia, mas que hoje vive quase reclusa, em Trancoso.No momento em que o Vila Velha completa 60 anos e a Companhia Novos Novos, 25, o espetáculo é também uma celebração da própria trajetória de Débora no universo infanto-juvenil, mas também à mulher que há seis décadas milita com maestria nesse mesmo ambiente, nos livros, na mídia impressa e no teatro.ServiçoCasa Barriga: domingo (24) e no próximo domingo (31/08) No Teatro Módulo (Pituba), às 11h. Ingressos: R$ R$ 50 e R$ 25 (meia-entrada)

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