Exposição Zé di Cabeça – Porto das Sardinhas
| Foto: Manuela Cavadas / Divulgação
Primeiro, Zé di Cabeça começou a pintar reverências às entidades que proporcionaram sua cura de uma enfermidade que o acometeu naquele tempo da pandemia. Mãe das Flores com melão de São Cristovão, uma pequena tela que me enfeitiçou assim que a notei, contém uma figura azul em seu centro, arrodeada por frutos amarelos, alaranjados e vermelhos na folhagem. Foi uma das primeiras das telas, me contou o artista, na abertura.“Ela surgiu na madeira que me chegou no Porto. As obras já estão nelas, nos relevos, saliências, esperando ser reveladas pela tinta”, conta Zé di Cabeça. Mãe das Flores é um dos ex-votos, em suas reinvenções. Os galos, as velas, as pitangas e toda sorte de entidades conhecidas, compartilhadas e também imaginadas por Zé di Cabeça, são recriadas ao lançar vida nos fragmentos de madeiras que se tornam telas, como as expostas na parede principal na composição Inventariar, também intitulada Inventário das coisas vivas.A composição contém trabalhos das séries Galos, Pitanga, Ex-votos e Velas, pintadas entre 2022 e 2025. Com dezenas, ou melhor, algumas centenas de telas – o conjunto com o maior número de obras expostas – a composição dá o tom alegre, vibrante e clemente da exposição.Pitanga, em tupi, significa criança, e elas estão espalhadas em suas particularidades, com cores, folhas e ramas, sinalizando “um desejo antigo do artista de seguir uma pesquisa sobre a fruta inserida numa história brasileira”, como narra o texto curatorial.As plantas, com suas competências enquanto seres vivos, foram objeto de pesquisa de Zé di Cabeça em uma oficina de xilogravura, estimulando uma troca com as mais velhas do bairro e proporcionando um jardim que hoje é um acervo vivo e disponível para o acesso da comunidade.Os ex-votos são compostos por entes, representações como Ori, rostos e algumas plantas, que limpam e curam, entre elas, Mãe das Flores.Os galos coloridos, com suas crinas e papos exuberantes, trazem seus nomes escritos abaixo de si. Seus nomes são o que Zé chama de “palavras ancestrais”, que chegam a partir do encontro com parceiros, instituições ou palavras lidas em livros, como em Macunaíma, de Mário de Andrade e de Mitologias dos Orixás, de Reginaldo Prandi, palavras que muitas vezes foram esquecidas e que ele entende que faz parte de sua trajetória fazê-las remontar à vida.“Memória viva que pulsa, que tem gosto, que tem cheiro, que tem cor, que movem o artista”, conta o curador. “As velas, no movimento da chama. A cor do sol se por. A chama acesa é a vida existindo mesmo depois que o sol se vai. Este painel é a forma de inventariar a vida, ao modo dele”, completa Ramon.
| Foto: Manuela Cavadas / Divulgação
Estudos para pássarosA segunda composição tem parte com uma experiência musical de Zé di Cabeça, de afetação, depois de um show de Carlinhos Brown, na Cidade Baixa. A energia do show proporcionou voos nos estudos para os pássaros, que a princípio existiriam no enquadramento do azulejo, transposto em delimitação no papel.Os pássaros são originados a partir de palavras ancestrais que o artista encontrou em dois livros, O tupi na geografia nacional, de Teodoro Sampaio, e O negro e o garimpo em Minas Gerais, de Aires Mata Machado Filho. Aqui, as palavras ancestrais ganham vida em pássaros em toda exuberância da diversidade do Porto das Sardinhas.Os olhos das aves, as cores em relação com as estruturas e seus bicos, são alinhavados com palavras como Canjerê, Cará, Ytoby, Atuá, Ixipé, Baipina, Baité e Piranga. Pássaros que compõem mais uma vez o inventariar.A apresentação dos estudos foi negociada entre curador e artista para fazer sentido para Zé di Cabeça. Eles foram disponibilizados em duas vitrines, uma para cada livro, oferecendo um outro tempo de apreciação estética, diferente da parede com vidro e à espera da dedicação do olhar do público direcionada para baixo.
| Foto: Manuela Cavadas / Divulgação
EdificaçõesO terceiro espaço composicional, Presentificar, expõe trabalhos de uma série de pinturas de edificações do Subúrbio Ferroviário de Salvador sobre azulejos que foram produzidos em colaboração com o artista Prentice Carvalho. A série traz os traçados arquitetônicos das platibandas de casas, alguns estabelecimentos comerciais como o Bar Zé de Valença, culturais, como o Espaço Boca de Brasa e o Instituto Araketu, e fachadas de terreiros de Candomblé.Algumas destas localidades deixaram de existir, seja pela especulação imobiliária, seja por processos violentos de urbanização, como o que subtraiu o trem de passageiros que transportava os moradores do Subúrbio Ferroviário além de Plataforma, que atravessa um dos braços da Baía de Todos-os-Santos.Durante as negociações da montagem da exposição, um quarto espaço foi sendo composto no mezanino que fita do alto a sala onde as três composições estão expostas. Nele, que normalmente abriga um dos quartos para residências artísticas da Pivô, há uma janela em cada extremidade que recebeu ao seu redor algumas telas de Velas, Galos e Pitanga. Em cada extremidade também foram colocadas esteiras e almofadas para acolher o educativo da exposição, que tem recebido diversas escolas.Em uma pequena estante montada na esteira da direita, alguns livros estão disponíveis para leitura de quem chegar. Ramon conta que foi Zé di Cabeça quem os escolheu na biblioteca do espaço cultural, deslocando-os para a exposição. São livros que costuram sentidos como Acervo da Laje: 14 anos contando histórias (invisíveis) de Salvador (catálogo), Corpo político, de Leonilson, e Pele Negra, Máscaras Brancas, de Franz Fanon – autor homenageado com Lélia Gonzalez na Escola Brasileira de Pensamento Decolonial, que acontece a partir de amanhã entre a Uneb e a Ufba, e na qual Zé Eduardo é um dos docentes, proporcionando uma oficina comunitária do evento no Acervo da Laje em sua programação.Na sexta-feira, 29 de agosto, às 19h, vai acontecer a Mesa de Conversa Cultivar o território como prática artista com Zé di Cabeça, a pesquisadora Gabriela Leandro Pereira e a curadora Lizete Lenhado, mediada pelo curador Ramon Martins, também gerente de projetos da Pivô.A mesa marca a despedida de Zé di Cabeça – Porto das Sardinhas e suas séries, cheias de histórias e de movimentos, e sela a abertura de novos caminhos para o artista. A exposição pode ser vista até o dia 30 de agosto na Pivô Arte e Pesquisa, na Rua Boulevard Suísso, 11, Nazaré.*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE.*Doutora em Arquitetura e Urbanismo, jornalista e integrante da Associação Filmes Quintal | [email protected]