
Reservas legais estão previstas no Código Florestal
Divulgação
O decreto publicado pelo Governo do Amazonas que permite reduzir de 80% para até 50% a área de reserva legal em propriedades rurais localizadas em regiões de floresta é considerado inconstitucional, apontam especialistas ouvidos pelo g1.
A medida, publicada neste mês, estabelece normas complementares ao Programa de Regularização Ambiental do estado e autoriza a diminuição do percentual de vegetação nativa obrigatória, desde que atendidos critérios específicos.
🔍CONTEXTO: Reserva Legal (RL) é uma área de vegetação nativa dentro de um imóvel rural, que deve ser mantida para assegurar o uso sustentável dos recursos naturais, a conservação da biodiversidade, e a manutenção de processos ecológicos. O percentual exigido varia de acordo com o bioma e a localização do imóvel.
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🌳 O Código Florestal exige que propriedades rurais na Amazônia Legal mantenham 80% de vegetação nativa, mas admite exceções. A mudança pode ser aplicada em municípios que tenham mais da metade do território ocupado por unidades de conservação ou terras indígenas homologadas, ou quando o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) autorizar a redução.
Segundo o governo, o Decreto n° 52.216/2025 busca conciliar regularização ambiental e desenvolvimento sustentável, dentro dos limites legais.
A nova regulamentação deve impactar diretamente produtores rurais que enfrentam dificuldades para se adequar às exigências do Código Florestal, especialmente em áreas com forte presença de populações tradicionais e unidades de conservação.
Segundo os especialistas ouvidos pelo g1, os principais pontos contestados no novo decreto estadual são:
Equiparação indevida: o decreto concede os mesmos benefícios a quem respeitou a legislação ambiental e a quem desmatou ilegalmente, desestimulando o cumprimento da lei por produtores sérios.
Violação do Código Florestal: ao alterar o marco temporal de 2008 — referência legal para regularização ambiental — o decreto cria novos direitos, o que é vedado por normas jurídicas. Decretos devem apenas regulamentar leis, não inová-las.
Conflito com a legislação estadual: apesar de citar a Lei nº 4.406/2016, o decreto apresenta previsões contrárias ao texto legal, gerando insegurança jurídica.
Risco ambiental: a medida pode agravar o desmatamento na região, especialmente em áreas críticas como o sul do estado, que já lidera os índices de devastação na Amazônia Legal. A redução da cobertura florestal ameaça a biodiversidade, os ciclos hidrológicos e os territórios de povos tradicionais.
O especialista em direito ambiental e secretário executivo do Observatório da Floresta, Marcelo Elvira, que explicou que o decreto o cria novos direitos, o que é proibido por normas jurídicas, tornando-o inconstitucional.
“O decreto contraria o Código Florestal ao criar situações novas. Também entra em conflito com a lei estadual de regularização ambiental. Por isso, tem muitos problemas e não pode continuar em vigor. É inconstitucional”, disse Marcelo.
O decreto também flexibiliza a recuperação de áreas desmatadas ilegalmente. Segundo o Observatório, ele equipara produtores legais aos que cometeram infrações, criando uma espécie de anistia ambiental que contraria o Código Florestal, a legislação estadual e a Constituição.
“Esse é um ponto importante de reforçar: ele iguala quem agiu dentro da lei e quem agiu contra a lei e isso é um problema, porque muitas vezes tem produtores que estão sempre satisfeitos, consultam a legislação antes, se protegem para agir dentro da legalidade e isso dá um trabalho. E quem não faz isso está sendo igualado, está recebendo o mesmo benefício”, relata o especialista.
Para o advogado especialista em direito ambiental Raimundo Albuquerque, o decreto afronta princípios constitucionais e pode gerar graves consequências ambientais e jurídicas.
“Ao permitir a redução da Reserva Legal em percentuais menores que o estabelecido no Código Florestal, o decreto estadual cria um precedente inconstitucional e extremamente preocupante. Ele afronta a lei federal, ignora o princípio da proibição do retrocesso ambiental e abre espaço para a legalização de desmatamentos irregulares. Na prática, isso pode representar um incentivo a crimes ambientais e até uma espécie de anistia para grileiros”, explica.
Ele reforça que, embora se apoie em dispositivos legais do Código Florestal e da legislação estadual, a aplicação do decreto pode representar um grave retrocesso.
“A Constituição é clara: o meio ambiente deve ser protegido, não flexibilizado. Legalizar desmatamentos passados é ir na contramão desse princípio”.
Como processo deveria ser feito
O superintendente do Ibama no Amazonas, Joel Araújo, afirmou que o decreto estadual que prevê a redução da reserva legal precisa ser analisado com cautela.
Segundo ele, embora a medida possa facilitar a regularização de áreas embargadas, especialmente de pequenos produtores, o texto precisava passar por debate no Conselho Estadual de Meio Ambiente, como determina o Código Florestal – o que não foi feito.
Além disso, o Estado e os municípios envolvidos não atendem aos critérios legais para esse tipo de alteração.
“A iniciativa pode até ter boas intenções, mas foi tomada de forma precipitada, sem consulta aos colegiados ambientais. Sem os estudos exigidos e sem autorização, qualquer desmatamento continua sendo crime ambiental”, destacou.
Por meio de nota, o Governo do Amazonas informou que o decreto não flexibiliza a legislação ambiental e que busca viabilizar a recuperação da vegetação nativa. Confira a nota na íntegra no fim da reportagem.
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🌱 Possíveis impactos
Segundo o Observatório da Floresta, a ausência de distinção entre propriedades pequenas, médias e grandes, somada à falta de critérios claros, pode gerar desigualdade e prejudicar quem investe em práticas sustentáveis.
Além disso, comunidades tradicionais correm o risco de sofrer com secas e perda de recursos naturais, enquanto o decreto ignora instrumentos como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Programa de Regularização Ambiental (PRA), fundamentais para a gestão responsável dos territórios.
Segundo o doutor em Ciência do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, Antônio Norte reduzir esse espaço significa comprometer a própria base de proteção da floresta.
“A Reserva Legal não é um espaço vazio ou improdutivo, ela cumpre um papel essencial para o equilíbrio do meio ambiente. Diminuir esse percentual, como prevê o decreto estadual, enfraquece a proteção da Amazônia e coloca em risco serviços ambientais fundamentais, como a regulação do clima e a preservação da água. Ou seja, o impacto negativo não atinge só a floresta, mas toda a sociedade”, explicou.
Leia a nota do Governo do Amazonas na íntegra:
O Governo do Amazonas esclarece que o Decreto nº 52.216/2025 não flexibiliza a legislação ambiental. Trata-se de uma medida que busca viabilizar a recuperação da vegetação nativa e o cumprimento da legislação para regularização ambiental por parte de produtores que desejam atuar dentro da legalidade.
Desta forma, o decreto apenas regulamenta dispositivos já previstos no Código Florestal Brasileiro (Lei Federal nº 12.651/2012, art. 12, §4º) e na Lei Estadual nº 4.406/2016 (art. 32), que permitem a redução da Reserva Legal em até 50% em duas situações:
1 – Exclusivamente para recomposição, em municípios com mais de 50% da área ocupada por Unidades de Conservação (UCs) de domínio público e Terras Indígenas (TIs) homologadas.
2 – Mediante consulta ao Conselho Estadual de Meio Ambiente, nos estados com Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) aprovado e mais de 65% do território protegido por UCs regularizadas e TIs homologadas.
No momento, o decreto estadual regulamenta apenas a primeira hipótese, aplicável unicamente à recomposição, já que o Amazonas ainda elabora seu ZEE – iniciado em Apuí como projeto-piloto, e possui menos de 65% do território protegido.
O decreto se aplica apenas a imóveis rurais com passivo ambiental anterior à regularização, situados em um dos 24 municípios que atendem ao critério de 50% do território ocupado por UC ou TI. São eles: Alvarães, Anori, Apuí, Atalaia do Norte, Benjamin Constant, Borba, Canutama, Carauari, Fonte Boa, Humaitá, Itamarati, Jutaí, Lábrea, Manaus, Manicoré, Maraã, Maués, Novo Airão, Novo Aripuanã, Presidente Figueiredo, Santa Isabel do Rio Negro, São Gabriel da Cachoeira, Tabatinga e Urucará.
A fiscalização continua sob responsabilidade do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam). O desmatamento não autorizado permanece ilegal, e o autorizado não poderá ultrapassar 20% da área do imóvel rural, conforme a legislação vigente.
O decreto não altera a exigência de 80% de Reserva Legal para imóveis com cobertura florestal preservada. Também não permite que os 30% restantes do passivo sejam usados para produção ou expansão econômica – essas áreas devem ser destinadas à regeneração natural.
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