Indústria do cinema ignora o potencial do Nordeste, denuncia professor

O pesquisador e professor Marcelo Ikeda lança hoje, durante as atividades do NordesteLab, no Goethe -Institut (Corredor da Vitória), o livro “Panorama do Mercado Audiovisual do Nordeste”, organizado junto ao crítico de cinema e jornalista, Arthur Gadelha. Um lançamento da Editora Sulina, o trabalho reúne extensa pesquisa sobre o cinema e o audiovisual nordestino através de um mapeamento da trajetória de crescimento e diversificação das produções na última década.Através de uma rede de pesquisadores (a REMAPANE – Rede de Pesquisa do Mercado Audiovisual e das Políticas Audiovisuais do Nordeste), coordenada por Ikeda e Gadelha e com membros presentes em todos os nove estados da região, foi definida uma metodologia com indicadores organizados por em quatro eixos: 1) agentes econômicos, com a análise das características das empresas do setor registradas na Ancine; 2) circuitos de exibição e difusão, com dados sobre salas comerciais de cinema, mostras e festivais, canais locais de televisão e plataformas de streaming; 3) obras produzidas e comercializadas, considerando o tipo de obra e os dados sobre a distribuição comercial de longas-metragens;4) aspectos transversais, abrangendo políticas públicas, associações e entidades de classe, formação, pesquisa e preservação.Na entrevista abaixo, o organizador aprofunda os aspectos de pesquisa e convida para o evento de lançamento que acontece hoje com as presenças, também, das pesquisadoras da Bahia Kátia Morais (UNEB) e Natacha Canesso (UFBA).A quais fatores sua pesquisa atribui o aumento de 100,5% do número de produções nordestinas registradas na Ancine com o Certificado de Produto Brasileiro nos últimos dez anos e o de apenas 10% em relação ao restante do Brasil?Esse aumento é verificado em todos os tipos de obras audiovisuais, mas o aumento mais expressivo é em séries. Em 2015, foram 23 séries do Nordeste registradas na Ancine, contra 98 séries em 2024. Mais de 4 vezes. Isso mostra o impacto da Lei 12485/2011, que criou cotas de programação nos canais e pacotes da TV por assinatura, no mercado audiovisual de todo o país, inclusive no Nordeste.Em relação às salas, a pesquisa constatou um aumento de 36,6% no número de cinemas comerciais, enquanto que o aumento no restante do Brasil ficou em uma média inferior a 20%. Quais condições econômicas favoráveis na região sua pesquisa constatou como fundamentais para essa diferença?Muitas vezes, o mercado no RJ-SP está saturado, especialmente nos grandes centros. Tanto que as novas salas do RJ-SP são em grande parte em cidades do interior, ou nas periferias das capitais. Na região Nordeste (bem como no Norte) há um enorme potencial econômico de expansão, bastante subaproveitado. Durante os governos Lula, houve também um grande crescimento da Classe C, que estimulou o aumento do consumo em regiões com menores ofertas de bens e serviços culturais.

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Existem dados relacionados ao número de salas de cinema fora dos shoppings? Se sim, quais são?São poucas as salas de cinema de rua. A Ancine promoveu uma linha chamada Cinema da Cidade, mas essa linha infelizmente não foi desenvolvida a contento. Há também salas fora de shoppings com programação mais diversa, como o circuito Sala de Arte (Salvador), os cinemas da Fundação Joaquim Nabuco (Recife), o Cinema do Dragão (Fortaleza), o Cine Banguê (João Pessoa). No entanto, Rio Grande do Norte e Piauí não possuem salas com esse perfil. Seria importante uma linha específica da Ancine com apoio do BNDES para a construção de salas com esse perfil. Hoje, não há. São raros os casos de salas de cinema de rua no interior, mas destacam-se o Cine RT (Remígio – PB), Cine São José (Afogados da Ingazeira – PE) e Cine Veneza (Propriá – SE). A pesquisa identificou um caso curioso no Ceará: o Grupo Pinheiro mantém 13 salas de cinema vinculadas à sua rede de supermercados, distribuídas por seis cidades do interior.A partir da definição dos eixos que organizam os indicadores de pesquisa e seus aspectos transversais, um importante destaque refere-se às Políticas Públicas para o audiovisual. Como os últimos dois anos e meio, após a recriação do MinC, se desenvolveram em relação a esse aspecto para o cinema feito no Nordeste?Os aspectos transversais são fundamentais, porque convencionalmente considera-se a cadeia produtiva clássica apenas como “produção-distribuição-exibição”. Mas é preciso perceber que outros aspectos, como a formação, as políticas públicas, a infraestrutura, a crítica cinematográfica, a preservação, etc., são fundamentais para uma compreensão mais ampliada da cadeia produtiva. Quanto às políticas públicas, essa pergunta é complexa e mereceria um artigo a parte. Creio que a Ancine e o MinC têm avançado muito pouco no governo Lula 3. A Lei Paulo Gustavo e a Lei Aldir Blanc, sem dúvidas, trouxeram uma contribuição para o setor, em termos do crescimento da produção, especialmente no interior dos estados. No entanto, houve muitos equívocos e problemas de execução na LPG. Creio que a LPG foi uma grande oportunidade desperdiçada, cuja execução ficou muito abaixo do seu potencial, pela falta de uma visão mais sistêmica do setor e de um planejamento mais integrado. A próxima pesquisa da REMAPANE pretende ser uma análise do impacto da LPG no setor audiovisual do Nordeste. Estamos buscando financiamento para poder desenvolver essa pesquisa.A produção cinematográfica do nordeste responde por apenas 9% das obras registradas pela Ancine nos últimos 10 anos. Ao mesmo tempo, alguns dos filmes mais bem sucedidos em presença de público nos últimos dez anos são do Nordeste, como as comédias dirigidas por Halder Gomes e dois dos filmes de Kleber Mendonça Filho, Aquarius e Bacurau. A quais fatores você atribui esse fato de uma produção menor ter um retorno em bilheteria e um impacto midiático tão maior em relação a produções de outros estados?Em termos de longas-metragens, é preciso perceber que, apesar do expressivo crescimento do NE e de outras regiões, a produção audiovisual brasileira ainda é bastante concentrada em produtoras do RJ-SP. No entanto, a repercussão do cinema pernambucano mostra que as políticas públicas locais, se feitas com critério e mantidas em continuidade por um período razoável, elas dão resultado. A cultura não surge “do dia para a noite”. É preciso tempo para que uma cinematografia possa surgir e amadurecer. O cinema pernambucano é a prova viva disso, da importância da articulação de uma política federal com uma política local, somando esforços. O Ceará também é um caso particular, com um forte investimento em políticas de formação, com duas universidades de cinema (UFC e Unifor), além de diversos cursos de formação, como a Vila das Artes, o Dragão do Mar e o Porto Iracema, que atuam numa lógica complementar. O Ceará tem tanto sucessos comerciais (como os filmes espíritas da Luz Filmes e as comédias de Halder Gomes) quanto filmes de grande potencial artístico (como os de Karim Ainouz, Petrus Cariry e os filmes do antigo Coletivo Alumbramento, como Guto Parente).Um dos destaques pontuados como fator essencial para a ampliação do número das mostras de cinema no período pós pandemia foi a Lei Paulo Gustavo. Você é otimista em relação a novas políticas de incentivo ao audiovisual? Sugeriria mudanças em relação à sua aplicabilidade? Se sim, quais?O apoio do Estado, as políticas públicas, são fundamentais para o desenvolvimento de qualquer cinematografia, uma vez que vivemos sob um mercado ocupado pelo produto estrangeiro, pelos blockbusters globais. Ao mesmo tempo, é fundamental que essas políticas alimentem toda a cadeia produtiva, e não só o setor de produção. Falta ao governo uma política mais estratégica, com base em indicadores sólidos, para a elaboração de uma política audiovisual mais ampla. Por exemplo, uma dimensão fundamental que as políticas públicas precisam avançar muito mais é na formação de públicos. As políticas públicas para o audiovisual brasileiro não devem atender somente aos cineastas e produtores, mas devem visar sobretudo à sociedade. As políticas precisam atuar numa outra lógica sistêmica, invertendo o eixo de suas prioridades, pensando não só na oferta mas também no acesso na inclusão e no consumo dos bens e serviços culturais.Em relação aos agentes econômicos registrados pela Ancine, o livro traz dados relacionados à centralização de empresas produtoras nas capitais do Nordeste, que, em 2024, sediavam 74,1% das empresas produtoras da região.Sim. Um grande desafio para o desenvolvimento do mercado audiovisual brasileiro é a interiorização. As políticas públicas vêm ignorando o grande potencial econômico e cultural de expansão dos interiores. Uma saída para os atuais impasses do mercado audiovisual é a expansão do consumo e da produção de cultura e audiovisual para além das capitais.

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