Violência doméstica contra a mulher: um olhar para além das medidas protetivas

Ana acordou sobressaltada, o coração disparado, as mãos suadas. Mesmo após três meses longe dele, o pesadelo ainda era o mesmo: Carlos gritando, quebrando objetos, culpando-a por tudo. Olhou para o relógio: 5h30 da manhã. Levantou-se devagar para não acordar os filhos que dormiam ao lado.Na pequena cozinha, Ana preparou um café. Suas mãos tremiam ao segurar a xícara. Parecia que, mesmo com a medida protetiva que impedia Carlos de se aproximar, algo ainda a mantinha presa àquela relação de 12 anos.”Não começou assim”, pensava Ana. No início, eram pequenas críticas, depois controle sobre suas roupas, amizades, horários. Quando percebeu, já não trabalhava mais, não via a família, não saía sozinha. O primeiro empurrão veio após uma discussão sobre uma mensagem em seu celular. Depois vieram as ameaças, tapas e socos.Foi após uma noite em que os filhos presenciaram a violência que Ana, finalmente, procurou ajuda na delegacia da mulher e pediu uma medida protetiva.

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Embora a lei tenha protegido Ana do seu agressor, ela não sabia viver sem ele. Pensava: “Mesmo odiando o que ele fazia comigo, eu não sei mais quem sou sem ele dizendo o que devo fazer.”Foi nesse momento de vulnerabilidade que Ana conheceu Júlia, terapeuta ocupacional do centro de saúde do bairro. Durante o primeiro encontro, Ana se surpreendeu quando, em vez de falar sobre Carlos, Júlia perguntou sobre suas atividades diárias, seus interesses antigos, seus sonhos abandonados.Júlia explicou para Ana que quando o parceiro a impedia de trabalhar, ver amigos, fazer atividades que gostava, aquilo era uma violência, chamada de injustiça ocupacional, pois a privava de ocupações fundamentais para sua identidade e bem-estar.Dias depois, Ana começou a participar de um grupo de mulheres coordenado por Júlia. Lá, aprendeu que a violência doméstica segue um ciclo perverso, enraizado na sociedade pelo patriarcado, que privilegia os homens e inferioriza as mulheres. Compreendeu por que muitas mulheres, mesmo com proteção judicial, acabam voltando para os agressores.Júlia explicou que a medida protetiva afasta o agressor, mas não reconstrói a autonomia e que era preciso trabalharem juntas para Ana recuperar sua capacidade de fazer escolhas, reorganizar sua rotina e reconstruir sua identidade.Com a ajuda de Júlia, Ana reorganizou sua casa e sua rotina, participou de oficinas onde redescobriu seu talento para artesanato e trabalhou técnicas para lidar com o medo e a ansiedade que a paralisavam.Seis meses depois, Ana conseguiu um emprego em uma loja de artesanato. Voltou a frequentar a casa da mãe e retomou amizades. Os pesadelos não desapareceram completamente, mas já não a controlavam.A história de Ana, embora fictícia, reflete uma realidade dolorosa que invade lares por todo o Brasil, deixando marcas profundas não só na mulher, mas em toda sua família. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – 2025, os dados registrados no ano de 2024 demonstram um aumento na maioria dos crimes contra as mulheres e revelam que 64,3% são mortas dentro de casa, por seus companheiros ou ex-companheiros (79,8%).Apesar do aumento na concessão das Medidas Protetivas em relação a 2023 (6,6%) e a queda no número de vítimas de feminicídios com medidas ativas, o papel do Judiciário é insuficiente. A violência doméstica deve ser enfrentada com a união de esforços entre o Poder Judiciário e uma rede multidisciplinar. Assistentes sociais, psicólogas(os) e terapeutas ocupacionais são exemplos de profissionais imprescindíveis para a reconstrução de vidas fragmentadas pela violência.É esse compromisso conjunto, ético e político, que pode realmente transformar histórias como a de Ana – fazendo com que o “final feliz” não seja apenas ficção, mas uma possibilidade real para milhares de mulheres brasileiras que ainda vivem presas em seus próprios lares.* Juiz de Direito no TJBA e especialista em Direitos Humanos pela UFBA** Estudante do Curso de Terapia Ocupacional na UFBA

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