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Embora a lei tenha protegido Ana do seu agressor, ela não sabia viver sem ele. Pensava: “Mesmo odiando o que ele fazia comigo, eu não sei mais quem sou sem ele dizendo o que devo fazer.”Foi nesse momento de vulnerabilidade que Ana conheceu Júlia, terapeuta ocupacional do centro de saúde do bairro. Durante o primeiro encontro, Ana se surpreendeu quando, em vez de falar sobre Carlos, Júlia perguntou sobre suas atividades diárias, seus interesses antigos, seus sonhos abandonados.Júlia explicou para Ana que quando o parceiro a impedia de trabalhar, ver amigos, fazer atividades que gostava, aquilo era uma violência, chamada de injustiça ocupacional, pois a privava de ocupações fundamentais para sua identidade e bem-estar.Dias depois, Ana começou a participar de um grupo de mulheres coordenado por Júlia. Lá, aprendeu que a violência doméstica segue um ciclo perverso, enraizado na sociedade pelo patriarcado, que privilegia os homens e inferioriza as mulheres. Compreendeu por que muitas mulheres, mesmo com proteção judicial, acabam voltando para os agressores.Júlia explicou que a medida protetiva afasta o agressor, mas não reconstrói a autonomia e que era preciso trabalharem juntas para Ana recuperar sua capacidade de fazer escolhas, reorganizar sua rotina e reconstruir sua identidade.Com a ajuda de Júlia, Ana reorganizou sua casa e sua rotina, participou de oficinas onde redescobriu seu talento para artesanato e trabalhou técnicas para lidar com o medo e a ansiedade que a paralisavam.Seis meses depois, Ana conseguiu um emprego em uma loja de artesanato. Voltou a frequentar a casa da mãe e retomou amizades. Os pesadelos não desapareceram completamente, mas já não a controlavam.A história de Ana, embora fictícia, reflete uma realidade dolorosa que invade lares por todo o Brasil, deixando marcas profundas não só na mulher, mas em toda sua família. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – 2025, os dados registrados no ano de 2024 demonstram um aumento na maioria dos crimes contra as mulheres e revelam que 64,3% são mortas dentro de casa, por seus companheiros ou ex-companheiros (79,8%).Apesar do aumento na concessão das Medidas Protetivas em relação a 2023 (6,6%) e a queda no número de vítimas de feminicídios com medidas ativas, o papel do Judiciário é insuficiente. A violência doméstica deve ser enfrentada com a união de esforços entre o Poder Judiciário e uma rede multidisciplinar. Assistentes sociais, psicólogas(os) e terapeutas ocupacionais são exemplos de profissionais imprescindíveis para a reconstrução de vidas fragmentadas pela violência.É esse compromisso conjunto, ético e político, que pode realmente transformar histórias como a de Ana – fazendo com que o “final feliz” não seja apenas ficção, mas uma possibilidade real para milhares de mulheres brasileiras que ainda vivem presas em seus próprios lares.* Juiz de Direito no TJBA e especialista em Direitos Humanos pela UFBA** Estudante do Curso de Terapia Ocupacional na UFBA